29 de junho de 2010

Ponteiros de pacto.



Só ele a notava de fato.

Não, não era apegado aos detalhes. Sabia que as pessoas criticavam o comportamento e o rosto macilento da garota, como sabia também que elogiavam o modo como os seus cabelos pareciam ter vida própria quando deslizavam harmoniosamente sobre os seus ombros.

Porém, sabia também que nenhuma dessas pessoas era tão observadora como ele, um rapaz de all star vermelhos e desgastados. Talvez o que lhe chamava a atenção era o seu modo peculiar de andar - sempre pulando rachaduras nas calçadas -, ou o seu habitual sorvete de flocos sob o de morango, ou até mesmo as suas visitas frequentes à mesma livraria que a sua prima. Ou todas essas opções. Não sabia dizer.

Ele não gostava de livros. Ele gostava de guitarras e apresentações em barzinhos de rock independente. Mas nem a sua apreciação por folhas repletas de palavras o afugentou. O fato era que nenhuma das características dela anteriormente citadas era tão marcante quanto o seu aparentemente velho e cintilante pingente de relógio.

Devo reforçar que ele não era apegado aos detalhes.

Ela não tinha nada de mais, estava ciente disso. Mas perdera as contas de quantas vezes foi flagrado encarando suas feições. Não era nenhum tipo de perversão, e a jovem do relógio parecia saber disso, porque quando por infelicidade – ou não – ele se descuidava e seus olhares se encontravam, ela apenas ria do rubor constrangido das maçãs do seu admirador e então voltava a folhear os livros da seção das edições limitadas – suas favoritas.

Mas o aspirante a compositor queria saber apenas uma coisa sobre a garota do relógio inquietante. E não conseguiria nada se continuasse a apenas remexer os bolsos quando ela se aproximasse.

Porém isso certamente iria mudar.

Certo dia, em que finalmente tivera coragem de pegar uma parte da sua economia para gastar em uma biografia, sentiu uma presença atrás de si enquanto pagava o caixa. Pelo reflexo do vidro, percebera que era ela.

Atrapalhou-se com o troco, amassou o pacote ao tirá-lo do balcão. A atendente levou a mão com uma tatuagem esquisita à boca para abafar uma risadinha. Ele mal notara que era um coelho, pois se virou para encarar a garota do pingente de relógio, que vidrava os olhos azuis nos seus com um sorriso.

Estranhamente ela estava saindo da livraria com as mãos abanando. O que aconteceu com os habituais livros que levava para casa no final do mês? Pare de me encarar e diga alguma coisa, o rapaz pensava cada vez mais aturdido com a situação.

Era preciso palavras e palavras escondidas ele tentava encontrar.

Ela estava com uma camiseta do Radiohead. E se ele comentasse sobre o último CD deles? Afinal, era a sua banda favorita e sentia um efeito aquecedor no seu peito ao pensar que poderia ser a favorita dela também. Era o mesmo efeito que causavam os solos de guitarra do Angus Young: Um calor delirante, apenas

Porém, ao abrir a boca, fora interrompido.

- Além de levar a vida de Kurt Cobain para casa, você gostaria de um pouco de tempo?

Silêncio. Ele piscou algumas vezes tentando entender o que a garota queria dizer. Ela puxou o relógio que marcava três da tarde em sua direção, para uma melhor visualização. Ele ruborizou pateticamente e começou a encarar o recente rasgo na sua calça jeans.

- Oh, que pena! – exclamou ela, desapontada.

E então ele viu os sapatos pretos diante dos seus se virarem e se afastarem, deixando o seu par sozinho. Alguns segundos se passaram até que pudesse se mover novamente. Não conseguia pensar em nada, apenas se lembrava das seguintes palavras:

“Você gostaria de um pouco de tempo?”

Seguiu-a antes que ela sumisse no meio de todas aquelas pessoas e percebera que se dirigia até uma cafeteria atravessando a avenida. Havia mesas espalhadas pela calçada, pintadas de branco. Tocava ironicamente In Bloom em alguma rádio local e ele sorriu ao perceber vasos pequenos repletos de flores pequenas como botões fazendo parte da decoração. Tudo ali tinha cheiro de bolo recém-saído do forno e de café. Tinha cheiro da sua infância.

Quando menos percebeu, a garota do relógio trazia de volta duas xícaras de café em cada mão e um sorriso tão agradável quanto. Fora tão rápida enquanto ele se absorvia em suas divagações, que nem percebera quando entrou na cafeteria. Confuso e sem proferir palavra, sentou-se junto a ela em um banco verde. Ficaram em silêncio, observando as pessoas passarem com seus compromissos empurrando suas pernas o mais rápido possível.

- Resolveu mudar de idéia e dividir o seu tempo comigo? – ela perguntou.

- Pois é. – respondeu.

- Que bom. Vou ter companhia hoje.

Ele olhou de soslaio para a corrente dourada que pendia do pescoço fino, deixando marcas por causa do relógio pesado. O barulho dos ponteiros era inaudível no meio de todos aqueles sons e cores.

Aquele era o momento de fazer a única pergunta que permanecia sem respostas sobre ela.

- Por que você não usa o relógio no pulso? Em um colar nunca se é possível ver as horas, a menos que se use um espelho.

- Eu sabia que cedo ou tarde você perguntaria.

Ela deu uma risadinha rápida e passou os dedos sobre a jóia, refletindo.

- É que eu não preciso de tempo. Já organizei o meu, mas quem vive a minha volta não. Então estou ajudando-os a resgatar o seu tempo perdido.

Ele fez um sinal vago com a cabeça e voltou a sorver o café.

- Eu não ligo para o tempo. – ela sorriu, olhando para as nuvens. – O medo da morte é tão grande que as pessoas querem fazer tudo antes dela, ou simplesmente não fazer nada porque acham que viver não vale à pena. Eu uso este relógio no pescoço porque é o lugar onde ele fica mais visível, menos óbvio. Assim as pessoas podem sempre se lembrar que poderiam estar fazendo algo mais interessante do que conversar comigo. Ou então sentirem prazer em conversar, por isso estão gastando bem o seu tempo.

Ela parou de falar e começou a observar um homem de aparência misteriosa e onisciente carregar vários algodões-doces. Eram nuvens rosas que pareciam ter flutuado do céu e repousado sobre varetas, uma doce tentação. A Garota do Tempo suspirou, sentindo o calor da xícara agora vazia se esvair por dentre os seus dedos.

- Mas todo mundo que passa por mim não entende o que eu estou fazendo com um relógio no pescoço. Acham que ele simplesmente serve para ver que horas são. – sua testa enrugou. – E então ficam mais apressados ainda em fazer a lição de casa que deixaram pela metade, o relatório para o dia seguinte, o compromisso com o chefe... Se ao menos fizessem que nem você e me perguntassem para que serve este relógio, pensou eu, acho que saberiam usar melhor os seus minutos, horas, dias, em coisas que lhes dão prazer, ao mesmo tempo em que fazem a diferença nas suas vidas.


- Você leva o tempo para as pessoas. – concluiu ele, deixando a xícara já vazia em uma mesinha ao lado do banco verde. Começava a sentir o efeito da cafeína em suas veias. Sorriu para ela. – Mas você aceitaria um pouco do meu tempo?

Os olhos da garota brilharam de surpresa, como um espelho d’ água refletindo o sol. Ela fez um sinal vago com a cabeça. Ninguém lhe dera tempo antes. O rapaz dos all star vermelhos e desgastados apontou para uma loja de discos e antiguidades. Soube de uma edição limitada e especial do Radiohead que esperava-o logo ali, em uma prateleira escondida.
Compraram dois algodões-doce, que vinham com balões vermelhos brinde, e se dirigiram à loja de esquina. Era uma retribuição: A menina o incitou a gastar seu tempo em leituras e agora ambos iriam gastar seus tempos em uma coisa que nunca é um desperdício: música.

Ele não era apegado aos detalhes dos outros. Mas teria tempo o suficiente de descobrir todos os detalhes da garota do pingente de relógio.

21 comentários:

  1. Eu e a minha capacidade de me apaixonar por qualquer coisa que você escreve.

    :]

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  2. ahhh, vocês e seus contos perfeitos. Me lembra a Lêticia, não gosto de ficar sem palavras, sabia ? Apesar disso acontecer constantemente quando eu leio textos tão perfeitos.

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  3. Linda história, nossa! Parabéns.

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  4. Foi o texto mais lindo que eu li, e em alguns momentos a menina do relógio me lembrou o coelho da Alice.
    É lindo, é apaixonante. Eu me sinto imensamente feliz de poder ler um texto desse no fim de mais uma segunda-feira.

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  5. Gostaria de dizer que esse texto é fascinante, mas fascinante não expressa nem metade do quão incrível ele é. Seus textos são grandes e eu poderia ler um livro deles. Percebi desde o primeiro dia que li um texto seu que eu não perco tempo lendo-o, eu estou gastando ele bem, e muito bem.

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  6. Voltei porque percebi que comentei algo e não me expliquei. É, eu percebo meu erro depois de um bom tempo rs.
    É que eu disse que a menina me lembrava o coelho da Alice, mas justamente por ela ser o oposto do coelho. É que geralmente eu ligo as coisas aos seus opostos.

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  7. Oi Marcela, sou o Marcello Lopes e encontrei seu blog por causa de um comentário no blog Confraria dos Trouxas.

    Adorei seu post sobre cantadas, tô rindo até agora...ser homem é bom, mas de vez em quando meus pares me envergonham absurdamente.

    Bjs

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  8. Li alguns do seus posts e fiquei impressionada com o seu jeito de escrever, como você fala de assuntos tão normais de um jeito tão incrível, de como seus textos realmente me fizeram pensar, ou me fizeram ver minha própria realidade. Créditos à Likealovegood, pois sem ela eu jamais teria encontrado seu blog. Eu não sei o que dizer, não sei nem como dizer que você é ótima de um jeito digno! hahaha. Continua escrevendo assim, daqui a uns anos ainda vejo seu nome na capa de algum livro. Estou te seguindo no twitter, beijos, Paula

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  9. Li alguns de seus contos.
    São encantadores, você já deve estar cansada de saber disso.
    Vou lhe contar uma curiosidade. Quase todos os textos que eu leio tem garotos de all star vermelho, inclusive um meu! Acho que isso é uma espécie de "tara".
    Seu vocabulário é rico e o conteúdo traz um gostinho de quero mais. Além do ar retrô que tudo isso aqui tem.

    Passarei mais vezes, estou encantada! Parabéns.

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  10. Acho que eles foram feitos um pro outro. E tá fácil assim encontrar algum homem capaz de decifrar TODOS os defeitos e qualidades, assim, sem medo e vulgaridade? Também quero! Hahahaha
    Um beeijo

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  11. Textos compridos costumam me fazer perder o interesse antes mesmo da metade, mas os seus não. (:

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  12. Que belíssimo blog, um encanto!

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  13. Não consegui desgrudar os olhos do seu texto! Bravo, bravo, bravo!

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  14. Como é possível eu te seguir a tanto tempo e nunca ter lido seu blog? :O
    eu adorei seu jeito de escrever, de verdade.
    estou seguindo, adieu.

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  15. Eu preciso confessar.

    Entro aqui todo dia e releio esse texto. Todo dia, sabe? É tão perfeito que, se pudesse, o levaria para todo lugar.

    Tenho muito orgulho de ser a madrinha desse blog :}

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  16. Li o texto várias vezes até encontrar palavras para descrever o que eu senti ao terminar (todas as vezes) e mesmo assim não me sinto capaz de colocar em palavras o que senti. Mas lembro de um trecho do Milan Kundera que expressa quase tudo o que seu texto me transmitiu "É errado censurar um romance que é fascinante por suas misteriosas coincidências...Mas é certo censurar o homem que é cego a essas coincidências em sua vida. Pois sendo assim, ele priva sua vida de uma nova dimensão de beleza". Parabéns por conseguir enxergar uma dimensão de beleza tão peculiar *-*

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  17. Como tudo aqui esse continua lindo.
    eu já lhe disse que você consegue escrever só coisas lindas e esse não me deixa mentir :)

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  18. Quando eu acabei de ler,admito que uma certa tristeza brotou em mim. Isso acontece sempre quando algo muito bom chega ao fim.
    Marcela, você escreve realmente muito bem. Eu tenho certeza que virei aqui várias vezes para reler, e acho até que vou, de algum jeito, imprimir e deixar em algum lugar que eu sempre olho. Perto de um relógio, talvez.

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  19. Amei seu blog, me apaixonei por esse texto.
    O tempo não para. E é isso que acontece. Quando olhamos para um relógio, lembramos do que não fizemos, do que já fizemos, o que vamos deixar para amanhã. Achei muito lindo mesmo! :)
    Parabéns :)
    Seguirei o blog, *-*
    Beijos!

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  20. Adorei tanto o texto e reli por muitas vezes. (e bem,In Bloom do Nirvana acabou se tornando meu vício)

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  21. Me apaixonei pelo texto. Realmente concordo com tudo o que a menina diz sobre o tempo e as pessoas. Me deu até vontade de ter um pingente de relógio para colocá-lo em meu pescoço. Lindo, lindo e lindo. Já estou seguindo.

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Sinestésicos.