2 de julho de 2010

De dentro para fora.

Dedicado a @larissacabelo por causa de um tweet trocado e por suas tão agradáveis palavras.


Para quem nunca viu ou sentiu um monstro, pensa que o que conto aqui não se trata de uma história perturbadora. Mas há algumas criaturas me assombrando esses dias... Preciso espantá-las de alguma forma.
Cuidado ao zombar delas.
Você pode estar zombando de si mesmo.




- Ah, tem um monstro no meu quarto!


“Mas já?”, ela se perguntou.


Era tarde. O relógio pesado de cuco pendurado na parede marcava quase três horas da manhã. O tempo passava rápido e silencioso, como tudo naquela sala de estar.


Sem dúvidas, uma noite incomum.


O garoto loiro que gritara estava suado e atordoado, com uma expressão terrível no rosto. Suas pequeninas mãos apertavam o lençol do seu time favorito de baseball, onde tinha se enrolado antes de fugir. E os olhos azuis, iguais a da jovem sentada na poltrona florida, lacrimejavam.


- Não voltarei para o meu quarto! Nunca mais. – o menino falou em um tom frenético, se virando para o corredor escuro atrás de si. – Tem alguma coisa lá!


Era a segunda semana do décimo mês. Isso significava que naquela noite os seus pais estavam em algum lugar “onde crianças não podem ir, porque era muito chato”. Portanto, o cargo de babá ficara para, naturalmente, a filha mais velha. Apesar de haver uma festa para ir naquela noite, ela acabou aceitando a tarefa porque estava precisando de dinheiro para alimentar a sua nova coleção de pôsters filmes antigos. Além disso, a sua vontade de não fazer outra coisa além de terminar de (re)ler a seus livros do Stephen King falou bem mais alto.


- É a Nina que te assustou. – falou pacientemente a jovem, enquanto revirava os olhos. - Volte a dormir.


- Eu tenho certeza que não.


De repente a criatura, em algum ponto do guarda roupa do menino, bufou e gemeu horrivelmente. Não havia nada ali. Abafaram um grito quando a porta do quarto bateu, e Nina, a cachorra, escapuliu pela portinhola com o rabo no meio das pernas.


Houve um momento de silêncio.


- Seja lá o que esse bicho for, não tem corpo de gente! – exclamou o caçula repentinamente. A outra estava boquiaberta, apertando com todas as forças um exemplar de O Iluminado. – E ele imita sons. Parecem gritos... de pessoas sofrendo. Às vezes parecem os meus gritos. Esses barulhos invadiam meus sonhos e não me deixam dormir... Acordei quase gritando, mas me assustei mais ainda com a coisa que estava no pé da minha cama. Ela olhava para mim, sorrindo!

A garota fez uma careta repugnante. Não tinha boas (velhas) lembranças de quando e era acordada por uma criatura que nunca vira em nenhum filme ou livro, puxando o seu cobertor.


- Acho que ele saiu de baixo da cama. – arriscou ela.

- Monstros sempre estão embaixo da cama.

- Não, às vezes eles saem de armários.

- Qualquer lugar escuro serve de esconderijo.

- Ou qualquer lugar da nossa imaginação, dã.

- Eu sei. - replicou ele, com a voz monótona.


Ambos sorriram de repente, um sorriso raro e cúmplice. A sua irmã mais velha parecia a seus pais falando daquela forma, mas havia uma diferença: apesar de ela não enxergar as mesmas coisas que ele enxergava, ainda não era totalmente racional.


- Mesmo assim tentei voltar a dormir - continuou. - Mas aí que eu comecei a ter pesadelos mesmo foi com o Tom, o filho do vizinho.


- O Tom?


O barulho do quarto de repente cessou.

Eles ficaram parados, tentando enxergar o que estava acontecendo na penumbra. O feixe de luz que escapava debaixo da porta oscilava. Algo passava ali a todo instante. Houve um baque surdo e então a aura estranha que emanava do corredor sumiu, como que levada pelo vento. Ainda sem ter coragem de se mexer, ficaram esperando. Nada. E então o menino suspirou aliviado, largando o lençol no chão.


- Ele me disse o seu nome. - murmurou finalmente, relutante.

- Interessante. - respondeu ela, colocando de volta os livros na estante. - Qual é?

- Peso Na Consciência.


Pausa.


A expressão da jovem ficou repentinamente séria. "O que você fez a Tom?" era a pergunta que cintilava perigosamente nos seus olhos.


- Ele não queria me emprestar o último jogo lançado da minha marca preferida de vídeo-game, então eu peguei quando ninguém não estava vendo! - falou alto e atropleladamente.

- E você mentiu para mim, falando que tinha ganhado do seu primo, e deve ter mentido para ele também, para variar. Pobre Thomas. - respirou fundo. - Ainda bem que monstros assim não enlouquecem pessoas. Só gostam de não deixá-las dormir.

Ele pediu desculpas.

- Eu já não os enxergo mais, mas eles existem. - concluiu a garota, lentamente. - E incomodam mais quando estão dentro da sua cabeça. Não param enquanto eu ou alguém não fizer alguma coisa pra consertar o erro que os atraiu. Ansiedade, Medo, Violência, Mentira... Se você não se cuidar, um ano a mais vira um monstro a mais.

- Existem um monte deles, então? - assustou-se. Não dava para acreditar. - Eles vêm te visitar, também?


- Sim. Todas as noites.

Cuco, cuco, cuco..., fazia o pássaro de madeira que morava no majestoso relógio. Ele anunciava minutos novinhos para serem utilizados. Inevitavelmente, olharam para o quadro de uma paisagem que jazia pendurado na parede, bem em frente da poltrona em que estavam sentados.


Havia uma citação do Stephen King escrita em giz-de-cera escondida logo no pedaço da parede atrás da moldura. A origem daquela frase - que estava ali muito antes de se mudarem para aquele lugar - era um mistério. Porém, como todos os moradores anteriores, seus pais preferiram não apagá-la quando reformaram a sala-de-estar.


"Monstros são reais e fantasmas são reais também. Vivem dentro de nós e, às vezes, vencem."


– Vamos voltar para seu quarto, que está tarde. Amanhã devolvemos o jogo do Tom.

- Você não vai contar para a mamãe, né?

- Não. - um sorriso brotou dos lábios do caçula. Ela levantou um dedo, carrancuda. - Mas só desta vez.

Quando os dois já haviam checado todos os cantos escuros, tomado uma xícara de leite quente e ajeitado as cobertas, ela se preparou para apagar a luz. Porém, assim que tocou na maçaneta da porta de madeira branca, o menino perguntou, com a voz sonolenta:

- De todos os monstros que você já viu, qual é o mais assustador?

Ela pareceu refletir. E então respondeu, com uma segurança convicta:

- Eu Mesma.

6 comentários:

  1. Adorei! Os detalhes, tudo... É como se eu estivesse ali com eles. :)

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  2. O texto me lembrou aquele tweet que nós trocamos.
    Acho que o medo de si mesma é o medo mais sensato. Até porque nos defender dos outros é fácil, e de nós? Ai complica.
    A cada texto eu fico mais tua fã, você é demais.

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  3. Como dizia um dragãozinho num desenho que minha irmã assistia: aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaadorei =D

    Muito legal monstros, fantasmas e o medo que toda criança tem, e muitos adultos também, tudo falta de fé na minha opinião, não deixando o interesse de lado hehehe, sempre gostei de pregar peças com sustos rsrs. Final excelente, não esperava por ele =)

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  4. Eu entrei na história, eu senti um arrepio no começo, eu acredito que realmente entrei no clima da história. E além disso, tem uma mensagem sendo passada, a forma como você personificou os sentimentos... Maravilhoso! não há outra palavra. Beijos, Paula.

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  5. Mar, novamente estás a me surpreender com teus textos, sempre tiras um sorriso do meu rosto ao final de cada leitura de algo que tu tenhas escrito. Preciso confessar-te que estou com saudades suas e que não enviei a tua carta ainda pois estava sem tempo, porém, agora que entrei em férias já a respondi e assim que puder sair para ir comprar o envelope colocarei-a no correio para que ela possa chegar até as tuas mãos. Beijo, querida. Sinto tua falta. @pequenatiss

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  6. Esse texto está incrível, e ele mostra muito bem a realidade. Devo dizer que tudo o que você escreve é inspirador, mas esse, está ainda mais.
    Eu gostei muito do final, as duas últimas linhas principalmente.
    Eu acho que antes de dormir, refletirei sobre os monstros e fantasmas que vivem dentro de nós.

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Sinestésicos.