26 de agosto de 2010

Smokers Outside The Hospital Doors (part I)

Obrigada por aceitar este "desafio" e depositar um pouquinho de você neste misterioso piano, mademoiselle Lê Lovegood.


{Ao ver um piano, qual é a primeira coisa que vem a sua mente?}

Quando o céu ameaça jogar sua fúria sobre Oxford como hoje, instintivamente me lembro de um artigo que li certa vez sobre Perséfone, uma bela e encantadora deusa da mitologia grega: “Durante os dias em que Perséfone vaga pela Terra, traz a primavera e o verão consigo”, dizia o autor, que tinha uma certa dificuldade em esconder a sua admiração pela entidade. “Em contrapartida, quando volta para as profundezas onde o abraço de Hades a espera, a superfície é obrigada a sofrer uma morte temporária, resultando no outono e no inverno.”

Esta era a noite em que o Outono começa.


Meu nome é Marvin Walker, porém você pode me chamar de Muker, simplificação de Music Maker, como me apelidavam as várias almas que por acaso cruzaram o meu caminho e infelizmente descobriram minhas canções não publicadas. Nasci no subúrbio de Oxford, em um dia calmo de 1991. Um ano normal, a não ser pelo burburinho que alguns jovens espalhavam sobre uma banda grunge de Aberdeen que revirava os nervos dos mais conservadores. Nirvana era o seu nome. Isso mesmo, como "liberdade da dor, do sofrimento e do mundo externo" segundo Kurt Cobain.

Passei a maior parte da minha vida - ou ao menos a parte em que me lembro - neste pequeno bar construído em blocos de mármore e madeira pintada de vermelho, secando copos e observando pessoas sonhadoras - e outras nem tanto - disputarem um lugar calmo para esquecerem seus infortúnios. E, por falar em sonhos, nunca pude seguir os meus. O destino preso a mim é o de assumir a responsabilidade deste pequeno estabelecimento que lucra com suspiros. A nossa principal fonte de renda se encontra logo ali, atravessando a rua de paralelepípedos nodosos e frios: aquela triste construção é na verdade um hospital relativamente novo, onde antigamente funcionava um ferro-velho. Eu ainda me lembro dos carros de vidros quebrados, das placas em néon de lanchonetes queimadas, dos grupos de adolescentes excêntricos e do velho paranóico Stanley que os expulsava aos berros. 

Todas estas velharias, inclusive Stanley, já devem ter mais de sete palmos de terra sobre si mesmos.

Desde que este hospital fora fundado convivo com fantasmas que carregam um corpo cansado e a resignação no olhar. Meu passatempo é servir os seus drinques favoritos: uma dose de whisky e um pouco dos meus ouvidos convenientes para geralmente desabafarem sobre alguém do posto de saúde. Ás vezes eu passava noites inteiras encarando os meus pés, imaginando os rostos, as músicas favoritas e a voz que tinham as pessoas que os meus clientes tanto amavam.

Nunca alguém os conheceu tão bem quanto eu.

Quando tinha onze anos lá veio ela. Radiante, extenuante, um terrível contraste de espírito. Eu havia acabado de derrubar um copo no chão. Um par de mãos recolheram os cacos. Seu nome era Sally. Era uma moça bem nascida e de sorriso natural, olhos azuis como a abóbada celeste, cheia de oportunidades e listas intermináveis de vidas salvas. Não me recordo dela tanto quanto gostaria, tenho apenas uns pequenos lapsos de memória como, por exemplo, o gélido estetoscópio contra os meus dedos, a sua sonora risada quando desvendávamos enigmas e, sobretudo, do seu cheiro. Ah, era tão bom. Cheiro de canela, álcool gel e esperança.

Um dia, como todos naquele bar ela fora embora. As vítimas de uma epidemia em alguma cidade no interior da Inglaterra precisavam mais de seus cuidados do que eu, suponho. Seu espírito maternal que preenchia o vazio havia partido em um trem e eu teria de prosseguir com a minha vida de uma forma ou de outra.

Foi uma das perdas mais difíceis a qual já tive oportunidade de superar.

As únicas coisas que me restaram de sua breve passagem são consequências de uma aposta perdida e repousam no momento ao lado das tulipas amarelas na janela: um chaveiro com três chaves, um bloco de notas amarelado contendo uma lista de suas canções prediletas e o seu número de celular.



“Cada chave pertence a algo importante para alguém.”



Talvez você descubra mais sobre estes curiosos objetos do que eu poderia, querido leitor. Vamos a eles:

A maior chave, enferrujada, com detalhes em latão e cheia de floreios, abria a fechadura de um misterioso piano que eu salvara do antigo depósito referido anteriormente. Aquele instrumento tinha um grande valor para mim e para Sally, que amava abri-lo toda vez que me fazia uma visita para espiar toda a parafernália do seu interior. Ele era imponente, talhado em mogno, com pinturas douradas de um jardim em plena primavera. No entanto, estas imagens estavam um tanto prejudicadas por arranhões, intempéries e traças, além de que o pobre inválido perdera para sempre a maioria das suas teclas. De qualquer forma, quando precisava de inspiração, me sentava em frente ao piano, a poeira e o tempo dançando ao meu redor, e começava a tocar uma canção qualquer que não precisasse daqueles acordes.

Ele prometia confidências e eu adorava ouvi-las.

A outra chave era bem menor e, segundo Sally, era uma cópia. “Um dia uma pessoa virá e lhe mostrará a original.”, disse-me antes de partir, com um tom divertido e propositalmente misterioso. “Saiba que você pode confiar nela”. Nada mais, nada menos. Apenas um conselho misterioso, casual. E a terceira chave... bem, eis a questão. A terceira chave não existe. Pelo menos naquela época eu pensava que não.

Nunca estive tão enganado em toda a minha vida.



Outono, 4 h 00.


Ela veio como uma sombra e o outono.

Naquela madrugada as únicas almas vivas eram alguns clientes e os tristes fumantes nas portas de fora do hospital. A noite era chuvosa e eu tinha acabado de terminar de escrever mais uma canção sobre uma garota que queria a liberdade, mas que nunca soube se livrar de si mesma. Minha inspiração era uma narrativa ainda fresca de um jovem que passara a tarde inteira encarando a sua latinha de Coca-Cola. Ele esperava o tempo passar e a cirurgia em que a sua namorada estava submetida - graças a uma tentativa estúpida de suicídio - chegar ao fim. Eu não sabia se ela sobreviveu, só sei que ele não retornou.

Ela veio como uma sombra e o inverno.

Alguém atravessou as portas de vidro e o som da sineta ecoou. Os escassos presentes a ignoraram, pois estavam sendo consumidos por suas incertezas. Ela possuía uma mochila, uma maleta com selos colados, um pacote de batatas Pringles e um jornal da semana passada debaixo do braço.

- Você é Marvin? – uma voz cautelosa e baixa perguntou-me de repente. – O Muker?

- Sim.

Tirei meus olhos da Magnet Magazine em minhas mãos e topei com uma visão inusitada.

O velho piano estava no sótão, sozinho com as histórias, e Órion, o gato preto errante com estrelas no lugar de olhos, dormia ao meu lado atrás do balcão onde o calor do forno margeava. A pele alva como leite entrava em um contraste enorme com os lábios vermelhos e queimados. Ela usava camiseta do The Smiths embaixo de dois casacos xadrez de flanela. O jornal que trazia estava sobre o balcão, a propaganda do nosso bar no rodapé circulada em caneta vermelha. Todo o seu cabelo, de uma cor azul turquesa, se esparramava para fora do coque mal arrumado. E as calças rasgadas nos joelhos denunciavam uma personalidade forte e intratável. Mas seus olhos... ah, seus olhos. Com certeza eram a música mais triste e mais bela que eu jamais poderia compor.

- Sally me falou para encontrá-lo. Acho que você perdeu a mesma aposta que eu. – disse a garota, apalpando atrapalhadamente os bolsos da calça, tentando não derrubar no chão a maleta cravada de selos.
Diante da minha perplexidade, tirou um molho de chaves igual ao que fazia companhia às tulipas amarelas. 

– Então, onde está o piano?

(Saiba que você pode confiar nela.)

Hesitei em responder. Sem jeito, apontei para onde Órion se encontrava deitado. Ali havia um alçapão adjacente a um porão muito mais sombrio que a superfície do bar, se isto era possível. Levantei a tampa e descemos a pequena escada de madeira que daria para os meus tesouros secretos. Acendi o abajur. A luz fraca iluminou vagamente pilhas de brinquedos, estantes repletas de papéis amarelados, pôsteres manchados colados à parede e algumas lembranças da minha mãe dentro de baús com estampas floridas. Estar ali era um tanto claustrofóbico, devo confirmar. Órion vinha nos seguindo silenciosamente logo atrás, seus olhos amarelos e vítreos focados nas nossas sombras. A garota fitou por um momento o seu redor, seus volumosos cabelos azuis refletindo o brilho do meu olhar. Enfiou a maior das chaves na fechadura de latão do piano. Ouviu-se um clique. E então a jovem resolveu experimentar a texturas sob seus dedos.

Uma nota tímida se pronunciou. Outra mais grave a calou. Olá novamente, Sr. Silêncio.

- Que grosseria! - exclamou em um sobressalto, fechando e trancando novamente o instrumento. - Sei seu nome e você não faz idéia do meu. Sou Perséfone.

Ela limpou as mãos gélidas como um lago nas vestes e apertou timidamente as minhas. Perséfone... Cada sílaba acariciou os meus ouvidos. Perguntei-me se ela teria mais características em comum àquela deusa da mitologia grega além de sua beleza adorável. Tive a impressão que a intrusa pedira uma xícara de café bem quente e algo sólido, porém minhas funções vitais estavam entorpecidas em demasia para raciocinar com clareza. Ela largara os seus pertences em algum canto e agora corria em direção à tentadora estante repleta de LP's de meu avô. Fiquei paralisado por alguns segundos, um tanto perturbado, e saí desse estado de espírito quando Órion veio ao meu encalço miando por um copo de leite. Mal eu sabia que a intenção de Perséfone não era apenas quitar a sua dívida com Sally.

Nos acomodamos em frente à estreita janela embaçada que deixava o hospital com uma aparência retorcida. Ora ou outra pés passavam apressados à altura de nossos olhos, já que a calçada era o "sobrado" do porão. O apresentador simpático da rádio local anunciava a música "Some Girls Are Bigger Than Others" e os sons  logo se propagaram pela atmosfera abafada.
- Olhe para lá. – disse-me Perséfone, apontando com os olhos cinzentos a entrada do hospital.
Ali havia um homem calvo, de pijama por baixo do sobretudo e esquecendo-se das cinzas do cigarro que se encontrava entre seus dedos. Atrás dele, sentada em um banco de cor suja, uma mulher (sua esposa, talvez?) tina o olhar afetado e consultava todo o momento a tela do celular.
- Não há criaturas mais deprimentes quanto estas pessoas.
- É óbvio que tem. Quem está dentro hospital.
Perséfone engoliu um soluço. Pousou a xícara sobre a coxa, e lançou uma frase tão rápida e murmurada que quase não pude acompanhar:

- Quem está doente se sente fortalecido independentemente do que sofre, porque sabe que quando voltar a ter uma vida normal alguém estará lhe esperando em casa. E quanto a este alguém? Será que continua a sorrir enquanto remoe sozinho suas expectativas frustradas?

Mordi o lábio alguns segundos. Tive a impressão que cada molécula daquele bar e o dinheiro que se encontrava na caixa registradora se tornaram insuportavelmente imundos. Mudei de assunto, interrompendo o fluxo de pensamentos destrutivos.

- Aqui é muito confortável. Vê aquele sofá verde musgo? É bem espaçoso. Você poderia ficar um tempo hospedada neste porão, se não se importar. Será mais fácil para eu lhe ensinar a tocar piano. Não vai lhe custar nada! - sobressaltei-me quando ela virou o rosto em minha direção, inexpressivo. - Apenas gostaria de instalá-la em um lugar melhor, mas meu pai é muito... intragável.

Perséfone puxou uma mecha de cabelo, pensativa, e esquadrinhou lentamente os cartazes de alguns filmes pregados no teto que eu pedia regularmente ao dono do cinema no centro da cidade. Sons distintos como gemidos e o alarme ensurdecedor de uma ambulância eram audíveis e pareciam perturbá-la. E então veio o sim.

Nenhum agradecimento, nenhuma exclamação ou contradição. A deusa grega apenas me presenteou com um sorriso simplório e singelo. E então voltou sua atenção para Órion, que apoiava a cabeça em sua perna, ronronando com os delicados dedos que traçavam trajetos sobre seus pêlos negros.

Aquele pequeno gesto valeu para mim mais que muitas melodias inesqueciveis.

A neblina agora era a personagem principal daquele espetáculo sombrio. Uma banda de garagem havia tocado há horas, no entanto o seu público fora tão reduzido que não passaram de duas canções e foram embora. O velho grupo (literalmente) de anarquistas continuavam a denegrir a imagem da rainha da Inglaterra. Uma mulher escrevia o último capítulo de seu romance renegado, enquanto um homem contava os grãos de ervilhas que estavam em seu prato.

Havia muitas almas interessantes para serem desvendadas naquela réstia de madrugada.

E eu escolhi apenas uma.


Ela veio como uma sombra, o inverno e o outono.
E traria junto consigo o sol para todos naquela rua

12 comentários:

  1. Oh, Mar.

    O modo como você construi essa narrativa é tão bonito e... intenso. Um sorriso passou pelos meus lábios ao ver pedacinhos de mim nessa história. Eu não poderia ter entregado meu piano em melhores mãos, querida Mar! Eu estou chorando. É tão lindo!

    Muito obrigada por tudo. Não posso expressar com palavras tudo que estou sentido ao ler isso.

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  2. Juro que vou ter que aprender a respirar de novo depois de ler isso! Mesmo sendo longo, é tão gostoso de se ler.
    Estou completamente apaixonada.
    E eu escolhi "interessante" por falta de tags melhores. Adicione "sensacional". =D

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  3. Mar, está... sem palavras.
    Quando algo é tão bom assim, eu fico sem palavras.
    E é encantador, simplesmente encantador.
    Tudo o que eu escrevo parece extremamente mesquinho perto desse texto.
    O da garota do relógio sempre foi o meu preferido, mas agora esse está empatadíssimo com aquele, não sei qual eu amo mais.

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  4. Que conto... inspirador!

    Confesso que é a minha primeira vez em seu blog, li o seu perfil e tenho gostos muito parecidos com os seus, isso deve ser por termos o mesmo nome, não acha? Vou visitar sempre seu blog e obrigada por esse conto lindo.

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  5. Me faltam palavras para falar sobre este teu conto. Estou encantada.

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  6. Sem dúvida que tu escreves lindamente.
    Apaixonei-me pelo teu blog.
    Continua a inspirar-nos com as tuas brilhantes palavras.

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  7. Estou a cerca de 10 minutos decidindo o que irei comentar. Mas me faltam palavras. Sério! Está lindo. Eu devia ter lido á mais tempo... Ah Mar, poste mais, e traga luz aos meus dias.

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  8. Não há palavras que sejam capazes de medir o seu talento, Mar. Você é simplesmente... Ótima!

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  9. Estou tentando buscar palavras pra descrever o quão bom é essa história. O modo como escreve é delicado, e dá a sensação de flutuação. Flutuar pela história. E ainda sim nós deixar com uma pitada de curiosidade sobre as chaves e qual era o objetivo de Sally. É realmente encantador.

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  10. Marcela, eu não estou encontrando palavras para esse conto. Não estou mentindo. Eu apreciei cada linha como aprecio cada gole de café. E, caso não saiba, eu amo café.
    Sorri ao ler sobre Sally. E sorri mais ainda quando meus olhos percorreram a descrição de Perséfone. Cabelos azuis! Eu imaginei perfeitamente. E se meu cabelo não fosse como é, eu o pintaria de azul, sem mentira.
    Eu achei o apelido Muker muito criativo.
    Fico feliz em ver "(part 1), porque, de verdade, uma continuação seria mesmo ótimo. Um pouco mais do seu modo de escrever, um pouco mais dessa históra.

    Me desculpe por minha demora. O tempo está passando rápido demais.

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  11. Como eu amei isso aqui. Tudo. Cada coisinha. Principalmente esses bonequinhos gritando saudade.

    Não fui convidada para entrar, nem muito menos para permanecer, mas eu volto.

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Sinestésicos.