16 de dezembro de 2010

(Aberratio Ictus)


(Olá, você está ligando para o Ódio. Se eu não atender
é porque estou no momento ocupado ou então
não me darei ao trabalho de levantar da cama. Favor, depois do...)


- Olá, camarada, cá estou eu mais uma vez, o Amor. Espero que não a última (isso já não depende de mim, bem sabe). Vejo que os boatos, bichos maldosos e imprudentes, já se espalharam, então não vou me demorar muito. Nem pretendo, na verdade, pois no momento estou enfiado em uma menina que ainda não sabe articular bem palavras com mais de seis letras.

A finalidade de minha ligação é para lhe avisar que estou acabado. No fim da linha, perdido, arruinado, use a expressão que lhe agradar e que mais tiver ares de drama. Covardia não é, pode ter certeza. O fato é que não aguento mais ouvir as pessoas proclamarem que amam tudo ou nada. É bem sabido que meios termos estão abolidos de seus dicionários, pois a superficialidade é a nova moda. 

Para começar, já achei um absurdo tentarem me enfiar do dicionário, mas vá lá: talvez para os outros significasse alguma coisa me atribuir significado. Isso não bastou. De tanto me procurarem, perseguirem-me para ajustar contas, confundir-me com a palpitante Paixão, enfim, de tanto me encaixarem em parâmetros aqui e literaturas baratas acolá, creio que perdi a importância (ou então a tenho em excesso, pois tem horas que sufoca). São esses motivos, afinal, da minha partida destas cidades ocidentais onde tudo se sente com a profundidade de uma poça de lama. Vamos, mexa-se, procure no respirar dos mortos, no ofuscar dos ricos, no frêmito dos lábios desejosos, na letargia dos telespectadores, nos cubos de gelos dos bares fétidos: não estou lá. Mas as pessoas (um bando de casmurros, isso sim) insistem em me procurar nestes mesmos locais.


Não farei a pergunta familiar dos pais decepcionados com a prole ("Onde foi que errei?") porque ela não vem ao caso e nem nunca virá. O fato - e aqui o apresento - é que a culpa é dos humanos e não da minha complexa contradição. Culpa das pessoas, veja bem, e nada mais.


Isso porque estão esperando tanto d'um pobre coitado como eu, que acabei virando algo inacessível, distante, idealizado (ah, esta é boa, enfiar umas regras de como saber me identificar, quanta polidez). Ou então, me tratam como um bibelô: "a facilidadade de aderir é a mesma de se livrar". E, como se já não bastassem tantos desaforos, andam falando de uma tal auto-suficiência: palavra floreada, invenção de psicólogo querendo afirmação. Pronúncia de encher a boca, mas que de enchimento n'alma não tem nada. 


Rio dessas bobagens - e com gosto - já que rir da cara da desgraça é o melhor remédio, é o que dizem os entendidos na medicina da Vida. 

Há alguns lugares em que posso me hospedar. A maioria tem ferrugem de Remorso ou goteiras da Ambição (e outros poréns que pouparei de gastar minha voz e seu tempo enumerando), mas enquanto houver conserto me revelarei faxineiro de primeira linha. Basta que o Coração - pensão de surpresas - não me cobrar mais do que posso oferecer.

Bem, era isso, camarada. Deixarei você tomar conta da situação, apesar de que sei que o Vazio irá te arrancar aos pontapés depois de um tempo. Natural. Ele é bem glutão, ninguém o nega necessidade, e faz os outros cometerem loucuras de deixar os cabelos brancos. Mande lembranças aos Sentimentos: andam mais ocupados do que o desempregado aqui. Não os culpo. E quanto aos humanos: eu os amo. Não duvido de que serão capazes de voltar a me amar (nem todos, porque não sou tonto) depois deste tempo de ausência da minha parte. 


Afinal, todo mundo é meio perdido, alguns mais, outros menos, pois a Imperfeição existe e é criança malcriada. Nessa trapalheira toda se erra o alvo do tiro e espero que logo desistam de tentar acertá-lo (me). Sabe bem como é: o Amor não gosta de guardas nem ilusões na recepção.


Até mais, camarada Ódio. Você terá muito trabalho pela frente.

21 comentários:

  1. Este texto me deixou sem palavras. Está bastante original e eu precisava vir comentar alguma coisa não é mesmo? Depois do trabalho que teve para tanta originalidade. Então... Achei que ficou bem elaborado, senhorita. Parabéns!

    Cuida-te.

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  2. Esse texto soou como um grito de desespero: "Chega!" E bem, eu gostei muito. Estou aqui gritando o mesmo.

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  3. Olá para as duas leitoras. Que honra, obrigada! Fico feliz que um último grito de Amor chegou a vocês.

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  4. Eu sou um tanto suspeita para falar, sabes que sou tua fã... Gosto da maioria de seus textos, mas acho que já encontrei o meu preferido.

    Parabéns Mar.

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  5. Eu sempre tentava imaginar o quanto o amor deve se sentir frustrado. Bom, acho que tenho uma idéia. Como colocar em meio termo algo tão intenso e extremo? Amo tanto o amor, que até sofrer por ele me parece atraente. Só que não dá para chamar de amor a superficialidade que ando encontrando. Parabéns pelo texto. Ficou lindo.

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  6. Estou perdida em meio a tantos elogios que tenho para lhe fazer que nem sem como começar.
    Há certo tempo venho vendo muitas pessoas reclamando de outras muitas que andam cuspindo o amor por aí, mas vejo que apenas repetem as mesmas poucas palavras que já andam se tornando trivial. Você não, querida. Fugiu de toda a banalidade e fez algo extremamente original e envolvente. Parabéns, Mar.

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  7. Obrigada... Vocês captaram o que eu quis transmitir. Creio que não mostrei nem um tiquinho da revolta do amor, mas tentei chegar perto. Não suporto mais essas mesmas ladainhas que vejo em todos os cantos. O amor é tão simples e suas repercussões são enormes. Não tem como explicar com simples superficiais, ou dizer um 'eu te amo' ao invés de 'obrigado', ou dizer que não ama nada sendo que é óbvio que ao menos sua mãe você diz que ama. Uma canção, um gesto, algo que você de fato sinta é que importa mais.

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  8. Querida Mar, quem mais se lembraria de fantasiar um telefonema do Sr. Amor ao Sr. Ódio? Está fantástico e muito engraçado.
    Gostei muito da personificação.

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  9. Mar... Mais uma vez me deixando sem palavras, o texto está realmente lindo e mostra tudo o que tem acontecido nos últimos tempos. Só não entendi uma coisa... O que significa o título?

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  10. brigada, Rafa e Raul. Bem, acho que a Wikipedia explica melhor do que eu: "Aberratio Ictus: Expressão em latim utilizado no mo jurídico: Erro de alvo. Quando o autor erra o alvo, de vítima. Quando atinge alguém, pensando ser outro." Quem erra de mira aqui no caso são os humanos.

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  11. Que belíssimo post!
    Adorei a forma como você se mostrou contra toda essa banalização do amor, toda essa superficialidade...
    Ao menos de uma coisa eu tenho certeza: Contigo ainda resta um pouco do camarada Amor, e não é do tipo de amor que se encontra em qualquer esquina.

    Essa revolta existe dentro de cada um de nós, mas só quando temos a verdadeira essência desse sentimento é que nos importamos com seu paradeiro.
    Lindíssima a forma como você escreve!
    Beijos.

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  12. Hey, meme é uma brincadeira, quase como uma corrente, que os blogueiros repassam, para no fim falarem um pouco sobre o mesmo assunto. Algo assim. Beijos e obrigado pelo o comentário (:

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  13. Que belo texto! Repleto de intertextualidade, bem escrito, singelo e inteligente. Parabéns!

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  14. E quando o ódio simplesmente não chega? Quando a culpa, o desespero, o drama e a tristeza vem, e passam e voltam, e nada de ódio, guria? Não sei mais como lidar. Liguei, e nem linha deu. Mudo. Acho que não quero nem conseguirei ódio sentir, a não ser, quem sabe, futuramente, desprezo. E que não me doa!
    Um beijo

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  15. Obrigada pelos comentários, é tudo o que posso dizer. E obrigada por me explicar o que é um meme, Isa.

    Camila, o Ódio é uma coisa engraçada. Dizem que ele anda de mãos dadas com o amor, mas às vezes ele não chega. São duas coisas muito extremas, o amor e o ódio. Então é difícil chegar a um dos dois, sem ter a tentação de permanecer pela metade. Espero que tudo fique bem e que não doa, porque dor n'alma é a mais pungente.

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  16. Vim até aqui pedir seu blog em casamento. Espero por uma resposta. Abraço.

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  17. Depende. Quais são as suas intenções com o meu filho? HAHAHA.

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  18. Tão lindo o texto que fiquei sem ter o que dizer. Fugiram-me as palavras e não tenho o que dizer além da verdade, apesar de ser um tanto quanto clichê: Ficou perfeito!

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  19. Tem um selo pra você no meu blog: http://nadaconclusiva.blogspot.com/2011/01/selo.html Beijos!

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  20. Acho que você ganhou mais uma fã. Eu gosto dessa coisa de personificar sentimentos, mas nem todos fazem com tanta destresa feito você. Juro que me arrepiei ao terminar de ler seu texto e você foi tão direta, mas tão intensa. Gostei do modo educado que o Amor conversou com o Ódio e como a prosa dos dois terminou. E é sempre assim. Muitos tem muito Amor, nenhum Amor. Ninguém se contenta realmente com o tanto que tem. Enfim, já não sei o que eu estou falando, só vim para te dar os meus parabéns e te notificar de que sou sua nova leitora. Obrigada por fazer textos tão lindos e instigar minha leitura.

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Sinestésicos.