8 de dezembro de 2010

Smokers Outside The Hospital Doors (part II)



"Cara Perséfone às avessas,

                                                                                                              
Como vai, minha querida? Está conseguindo dinheiro para ao menos se alimentar? Uma cama confortável no final do dia? Às vezes me sinto culpado por roubar seus verdadeiros tesouros e mantê-los aqui. 

Quanto a mim não há muitas novidades. Peguei um forte resfriado semana passada, mas estou tão bem neste momento que posso pular de um cavalo em movimento - no entanto, sei que estou ficando velho e já não posso mais fazê-lo. Órion tem dificuldades de andar, mas seus olhos continuam tão vívidos de luz que chego a me assustar quando me deparo com eles ao acordar. Vivo preso às lembranças. Isso é inevitável. Gostaria de revivê-las, pular em um buraco-negro, virar ao avesso o tempo como se isso fosse tão fácil quanto respirar. Mas não é. Apenas posso viver em função do futuro, à espera.

Que você compartilhe deste mesmo sentimento.

Caso lhe interesse, hoje é outono. Um dia dentro de novembro, que está a passeio pelas mesmas ruas em que Thom Yorke cresceu. De qualquer forma, não sei quando ou onde receberá esta carta, portanto acho melhor não defini-la com datas ou locais. Só posso dizer que é outono, exatamente quatro horas da manhã. Isto ainda soa familiar para você?

Os negócios andam ótimos e só tendem a melhorar desde a sua partida. Dizem que a música é o remédio da alma triste. Se isto é verdade, o hospital que ainda repousa do outro lado da rua tem uma farmácia em potencial bem aos seus pés.

Lembro-me da época em que eu a via todos os dias. Vinte e quatro horas pareciam se encurtar cada vez mais; eu de um lado do balcão, você debaixo do piso de madeira com polimento barato. O porão ainda lhe pertence, se um dia quiser voltar. Mas está muito fosco, nem o reconheço mais. Ali há apenas cinzas de dias que jamais virão, cinzas que não posso limpar.

Na primeira vez em que nos vimos, você trazia vários mapas e uma maleta revestida de selos e repleta de pedras, estas últimas reunidas durante anos com a destreza de um especialista. Algumas rochas eram tão sem atrativos comparada às outras bem mais impressionantes. (Quando questionei sobre a origem de um rubi e um diamante minúsculos que ali estavam, disse-me apenas que eram pedras e portanto não têm origens definidas. Desconfio que a minha aparentemente inócua Perséfone as obteve por meios obscuros.) Não encontramos um local onde vendesse teclas para pianos e não tenho certeza se conseguiríamos tal feito. Quando propus dar utilidade a sua coleção de pedras, lembro-me que você pareceu refletir. E o fez durante toda uma tarde. Argumentei que fui um bom polidor, soldador e escultor desde a infância. Com o cuidado necessário, não iria quebrar as pedras nem deixá-las feias. Dariam boas teclas para o nosso querido piano. 

“Tudo para cumprir a nossa parte na aposta”. 

Gostaria de saber se esta frase dita com tanta dificuldade foi verdadeira.

Ensinei-lhe notas, querida Perséfone, mostrei-lhe mundos que só nós dois alcançaríamos. Só eu e você e sua coordenação motora de um rockstar dos anos oitenta. Só eu e você e o onisciente piano que estava deficiente bem onde se acoplava toda a maquinaria que faria tecer notas de uma bela canção. Reconheço que as aulas eram sempre tão monossilábicas quanto um livro para crianças de cinco anos.

(Entretanto, tão significativas quanto um sorriso durante uma confissão.)

Conforme o tempo passava e a nossa relação se estreitava, planos desprezíveis foram dominando a minha mente. Como tinha um carinho tão intenso pela coleção, pensei, quem sabe se as pedras ficassem aqui também permaneceria a colecionadora? Não posso dizer que era uma má idéia (ainda que egoísta). Seu perfil se encaixava no grupo das pessoas solitárias e errantes, tal qual a minha alma. Tinha acabado de sair de uma república e desde então morava de favor em vários locais. Descobri que tinha chegado perto de publicar um livro, mas seus manuscritos foram roubados junto com sua bolsa certa vez. Desde então entrega cartas que não chegaram a conhecer seus destinatários por erros do remetente ou porque o primeiro estava de mudança, muitas vezes para alguns palmos debaixo da terra. Era tão curiosa que abria aqueles envelopes e lia de noite, sob a luz das velas derretidas, como se fossem um bestseller empolgante. Tenho esperanças de que esta carta também chegue a uma destas pilhas, já que você nunca tem um endereço fixo, tal qual uma foragida. Não duvido de tal fato, analisando seu passado frio e incolor, quase divino de tão intocável.


Se observar era a alma do poeta, acho que passei pela experiência de ser um.

Lembro-me que assoprava o café três vezes antes de tomá-lo. Que gostava de ligar as pintas do meu braço com canetinha para formar figuras. Nunca usava meias de pares iguais, apesar de tê-los. Ás vezes, quando se sentia nervosa, fazia tranças no cabelo até cansar. E enquanto eu esculpia pedras de todos os tipos, você escrevia, sem a minha permissão na tampa do piano quase renovado letras de canções que eu compunha, outras que soavam familiares.


Até hoje elas estão ali, intocadas.

Estabeleceu-se uma rotina que se incorporara a mim como um vicio. Portanto não sei se ainda faz sentido preparar panquecas para serem tomadas com Tropicana no café da manhã. E muito menos procurar pedras grandes pela rua como fazíamos antigamente.

Hoje uma menina com o mar em seus olhos e fios de ouro escorrendo pelas costas sentou-se, curiosa como a criança que era, em frente ao nosso piano. Ela não sabia tocar uma nota. Ou seria melhor encaixar o trocadilho “uma pedra”? Mas sabia cativar com seu leve e preguiçoso balançar, tal qual você. 

Pela primeira vez há muito tempo, paro para derramar o mar de meus olhos, embalado naquele  sentimento familiar para todos os fantasmas efêmeros que passam por aqui. 

“Apenas sei que nunca vi algo tão triste quanto fumantes na porta do hospital. Isso já não se trata mais de uma aposta, Muker. Eu prefiro pessoas sorrindo. Ficam muito mais bonitas.” 


(Alegro-me a dizer que verás ainda mais pessoas bonitas aqui do que a última vez.)

Quando proferiu esta frase, você tocava uma música fácil que, hoje entendo, resume sua história. Smokers Outside The Hospital Doors. Seu cabelo, tão irreal e já desbotado nas raízes, refletia em azul a luz da luminária. Emoções inéditas. Sentimentos de várias gerações por quem passou o instrumento, liberados aos borbotões em cada nota debaixo dos delicados dedos de Perséfone. Depois que você notou o meu olhar, tratou de tingir seu cabelo novamente.


Epifania: o velho piano e uma coleção excêntrica nos uniu. 


Passei a negligenciar minhas tarefas com pretexto de ouvi-la falar de sua vida. Era agora uma criatura das profundezas. Recebia apenas alguns capítulos, talvez os mais importantes, com direito a filmes favoritos e sonhos. Doses homeopáticas, eu definiria. Pesquisei então sobre o seu passado quando você partiu, minha cara, já que não tenho muito o que fazer por aqui. Espero que não se importe. Lembra-se da amiga de Sally, a senhora Phelps? Sim, a que vivia constantemente mau-humorada?

“Um dia Perséfone já pertenceu a história deste lugar.”, disse ela, com sorriso manchado de nicotina. Seus cabelos estavam acinzentados de tanto sofrerem o efeito das dores humanas.  “É confortavelmente frio viver em um hospital. Atenção vinte e quatro horas, sabe. Quando não estava olhando o teto, estava desenhando rostos de pessoas que iam e voltavam. (lixa as unhas quebradiças. Assopro) Em um piscar de olhos dez anos foram desperdiçados. Mas nada era tão horrível quanto a dor dos outros de vê-la naquela situação. (sorriso) E de repente, lá estava Sally, em seu uniforme branco e o seu esplendor que a contaminava como uma doença. Boa parte destas pedras que estão agora naquele belo piano foi ela quem a ajudou a colecionar. Dizia que se Perséfone tivesse um objetivo na vida, seria bem mais fácil de superá-la e vive-la. (Grunhido. Quebrou uma unha) Tomavam café escondidas de manhã e alguma coisa proibida pelos médicos à tarde. Foi assim durante um bom tempo, até que nossa garotinha completara quinze anos em uma cama impecável e cercada de  olhares perfeitamente disfarçados. Sorria obedientemente, falava palavras de agradecimento decoradas. Inclusive seus pais, que, mesmo debaixo de todos aqueles trejeitos e máscaras, escondiam o cansaço de um fardo difícil de carregar... 

(Gostaria de um lenço, sra. Phelps?) 

"Neste dia, Perséfone pediu à Sally um presente. Ela lhe concedeu, sem hesitar. Talvez fossem muito parecidas. Então a médica lhe disse: ‘Despeça-se de seus amigos e de seu parentes. Você não os verá outra vez’. Era uma linda noite em que podia-se ver até mesmo galáxias.”


Isso era tudo.

Sem mais detalhes ou revelações bombásticas. 

Não consegui sequer arrancar seu nome verdadeiro da velha mulher. Obrigado por ter escondido sua saúde frágil. Eu a entregaria para aquele hospital desprezível. Entrementes, uma vez livre, é difícil se acostumar com um novo exílio, não é mesmo? E no final, quem acabara preso à suas origens fui eu. 

Não gostaria de dizer quantas ruas escuras e estreitas minhas pernas vagaram depois do depoimento da antiga recepcionista. Estava perplexo demais para se dar ao trabalho de pensar. Fiquei durante toda a madrugada sentado em um banco de mármore naquela pracinha frequentada por delinquentes. Mas chegou um momento em que os cigarros acabaram.

Isso me fez lembrar daquele dia, quando lhe perguntei se as pedras da sua coleção que lhe davam vida. Temo que, como elas ainda estão aqui, você já não respire mais neste mundo.

Conheço um carteiro intragável no xadrez e conhecido seu. De renome. Ele me fará o grande favor de dar um jeito de entregar estas notícias - que já não eram sem tempo - nas suas mãos.  Me responda esta carta desta vez, é tudo que lhe peço. “Voltarei no próximo inverno. O mundo é um passatempo. Esta é a minha casa”. Que o inverno chegue logo este ano, Persófone. Assim você me trás o verão. Ainda tenho visões de cabelos azulados atravessando a porta. Continue a achar objetivos para viver, já que suas pedras agora não pertencem mais a você, apenas: parte da sua vida está aqui agora.

Ainda guardo as velas das nossas leituras clandestinas. Do sempre seu, Muker.

PS: Ando remoendo uma recordação que pensei estar enterrada. Foi aquela vez em que Sally estava na companhia de uma garotinha. Olhos como o céu de Oxford, cabelos castanhos escuros e um sorriso que parecia ter se escondido durante toda uma vida. Não me recordo dela com clareza. Mas sei que foi neste mesmo dia em que Sally me propôs aquela aposta."
-

O homem, evidenciando algumas marcas inevitáveis da idade, releu a correspondência mais uma vez. A memória daquele fim de tarde em sua juventude reverberava em sua mente, como se estivesse acontecendo ao seu redor. Ele podia ver as pessoas, a música,o piano, a garota dos cabelos turquesa e o rapaz erguendo o celular velho em direção ao ar. Mas no momento só ele e, quem sabe, o gato preto no seu colo, poderiam ver aquelas imagens. Os fragmentos de memórias não alcançavam os transeuntes sob a sombra do hospital, que sorriam para o piano multicolorido e depositavam ali algo de valor. 

Hesitante, pegou a caneta azul. Pensou um pouco e escreveu no envelope, as mãos cheias de cicatrizes:


“Tenho panquecas e Tropicana.”


E então depositou suas esperanças na familiar caixa de correios a um quarteirão de distância.


(Parte I aqui)

12 comentários:

  1. Seus textos têm algo ingênuo que me fazem relê-los milhões de vezes.

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  2. Odeio quando algo é tão bonito e me faltam palavras. Digo, é ruim não saber o que lhe dizer. Está lindo Mar!

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  3. Não há palavras que possam descrever a intensidade dos seus textos. De verdade. São maravilhosos e emocionantes.

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  7. Mar, Mar, Mar! Que... maravilhoso. Lindo. Chocante. Encantador e cativante. Enfim... Mesmo que eu usasse todos os adjetivos que expressem qualidades possíveis, não expressariam o quanto eu achei o seu texto algo extraordinário.
    Sinto que estou em falta contigo, Mar. Nunca mais parei para ler ou comentar por aqui. Você sumiu e eu sumi também, por motivos adversos. E enfim. Mas agora estou aqui, novamente lendo mais um de seus maravilhosos escritos.
    Li a primeira parte e confesso que não imaginava que a história tomaria esse rumo, linda. Mas você é surpreendente e faz a história ter um desfecho inimaginável. É isso que eu admiro em você. Arrisco dizer, Mar, que o modo como você descreve cada detalhe e lida com grandes textos, lhe deixa no caminho para escrever livros no futuro. Capacidade e imaginação tu tens, guria.
    Ao ler ambas as partes ao som de That Time - Regina Spektor, confesso que fiquei encantada. Confesso também que imaginei levemente os personagens do filme Once. Apesar de suas fisionomias serem totalmente diferentes da descriação das suas personagens. O jeito do texto, as imagens, me transportaram para aquele cenário. Entende, minha linda?
    Por fim, fico por aqui. Desculpe se o comentário ficou muito grande. Foi a minha forma de agradecer aos comentários que você deixou-me em meu blog esses últimos tempos e eu não correspondi. Cuide-se, guria do sotaque fofo.
    PS: Mandarei-lhe uma surpresa juntamente com a minha carta. Algo raro, mas desconfio que já devo ter comentado em algumas das nossas conversas indiretamente sobre essa coisa.
    Mandarei-a essa semana. Espero que chegue antes do Natal. Será o meu presente. Um beijo grande, @pequenatiss.

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  8. Como sempre fico sem palavras para seus textos.
    São tão encantadores, a impressão que me passa é que você nasceu sabendo escrever.
    A cada texto tenho mais vontade de te conhecer e de um dia dizer: "tá vendo aquela autora ali dando autógrafos? Então, já ganhei um abraço dela, quando ela tinha apenas 15 anos".

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  9. Awn, que lindo. Você escreve muito bem. É um encanto a cada palavra, a cada sentimento. Me emociono quando leio os seus textos. Tens uma fã para toda a vida.
    @abookslover

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Sinestésicos.