19 de janeiro de 2011

Smokers Outside The Hospital Doors (End)




(Contei sobre o começo e a metade da história virou o fim. Poetizo agora sobre o meio, aquele que nunca esqueci.)

No domingo em que o pagamento da aposta estava sendo preparado
- Canções, Sally, Chaves, Muker, Perséfone, Órion e Gim -
O piano finalmente deslumbrou a superfície e foi observado.
Quem passava pelo bar questionava sobre a origem
Daquele amadeirado e modificado escravo da Música:
“Do amor, da história e da paciência”, diria o ansioso homem.
Mas Perséfone ali estava, então a língua permaneceu muda.

Venham! Venham! Tristes Almas!, dizia o olhar em fogo do gato,
Que este imponente Piano dará adeus a um ciclo e iniciará outro.
Pois nele há suor, fotografias, gracejos, insônia e um trato,
Pedras, madeira, poeira, armadilhas e algo melhor que ouro.
As teclas refletem cores do arco-íris e absorvem as do outono:
Isso é porque temos uma droga ainda mais potente
Que vocês, fumantes, não encontrarão ao longo de outro ano.

(Deslumbrante) Corações e mentes que se aproximavam sussurravam,
(Petulante) Estava a deusa azul das profundezas e superfícies incontáveis
Para ele era só ela, que não se definia com milhões de adjetivos invejáveis.
Ela, que senta entristecida defronte ao confidente piano, no banco.
Ele, que disca o número da velha amiga vestida de branco.
Ela, Ele, Eles, Elas.
Oh, pobres criaturas que convivem com as trevas!

(Alô, aqui é Sally)
Ecoou a voz de dentro do velho celular.
(Muker, essa é lá hora de me ligar?)

Psst. Antes da explosão haverá sempre o silêncio.

Então o mundo parou para ouvir: o ritmo desesperado da jovem continuava ali.
Escócia, África, Brasil - para outras nacionalidades os espíritos foram seguir
Sobre as teclas de pedra e de porcelana os dedos pálidos (alucinados) dançavam,
Dos úmidos e queimados cigarros os lábios nus (humildemente) descolavam.
A doce melodia – esperançosas notas alegres de um famoso filme francês - se erguia,
Para abrir janelas da floricultura, portas da farmácia, do necrotério, das vidas vadias.
E o novíssimo Hospital, inabalável e frio ali onde permanecia, observava
A faixa de pedestres virar a ponte de cada ser sombrio que ainda amava.

De onde vem esta melodia?, se perguntava a multidão amontoada.
Eu já a ouvi certa vez em um filme, ou foi em um livro?, quando ansiava, me condenava?
Casamento, aniversário, quando quebrei um vidro? (Não espalhe, acho que foi na aula sobre hino.)

Testemunhei, fascinado, nós, todos sem pôr nem tirar
Unidos pela música de um piano a tocar sem cessar
 Sobrevivente das fúrias, das intempéries, das guerras,
Que sofrera todos os tipos de modificações férreas
Como um ser vivo, como um ser humano,
Que levava canções para onde houvesse almas, O Piano
 Que pertencia a nós, fumantes de nicotina,
Ou de doces, conhecimentos, do amargo abandono,
Ou fumantes de angústias, cotidianos, amores, lembranças,
E outros vícios (i)lícitos, solícitos, achando alívio.
(Fumantes, ainda que um tanto crianças)

Perséfone sorrira naquele momento e nos outros tardios
Mais que em toda a sua cigana caminhada.
Em um apartamento defronte a loja de pássaros sem pios,
Sally, o ouvido encostado ao telefone, copiosamente chorava.
Misturou todos os sentimentos perdidos e reencontrados
A uma lágrima vazada de uma rica eslava,
Do escritor bem sucedido, do taxista sem semelhante destino,
De um travesti só sorrisos, da bailarina sem sapatilhas, do triste menino,
Veja aquela camponesa com um bebê no ventre e outros seis no ninho!

E quando as pessoas grudavam à vitrine e sentavam na calçada,
Algo de impressionante aconteceu: 
Sob vários olhares uma frágil senhora vinha, tossindo, calada,
E pôs em cima da tampa do piano um frasco de perfume vazio.
Antes de sair pela rua até o hospital onde em um banco esperava,
Disse-me, tentando um sorriso: 
“É tudo o que tenho, além de uma enteada.
É um pagamento: Estou curada!”.

(Poetas mortos que já tentaram explicar todos os sentimentos do mundo,
Já pararam para pensar nos poderes que algo que os desencadeia possui?)

Depois o desenrolar dos fatos foi se dando sozinho.
Uma fotografia achou seu lugar ao lado do pagamento anterior, vizinho.
O som morreu, se acentuou, o piano, Perséfone!,  
Explodiram em cores, brasas, passos no telefone!
Ressuscitando mortos e vivos, que tal Champanhe? 
Uma pena, uma bola de meias, uma camisa do clube favorito.
Terços, flores, tigelas, um cobertor, um periquito.
Veja, há coro ali, alguém descobriu que sabe a letra e a entoá-la,
Veja, quase aquele franzino paralítico dança pela (e com) a sala!
Danúbio azul, Yann Tiersen, Pink Floyd, Jazz, um quê de boate.
Combinações (im)possíveis que um dia Sally imaginou ou gostasse,
Pois na música, como dentro da gente, você voa sem limite, voou, voaste...

E assim seguiu a Noite e a Lua dando voltas curiosas
Como os pacientes que espiavam pela janela
E os moradores que lançavam olhadelas.
E, aquela rua que jamais vira a Esperança de perto, 
Não silenciou com os protestos da Direção do Hospital sem afeto.
O bar já não era mais bar, mas um flamejante altar
Onde se devotavam todos, de alma e de corpo,
À cura que a música conseguia alcançar.

Uma hora o tempo estourou, a festa o acompanhou.
O piano sorria o sorriso torto, cheio de presentes.
Era tarde para escapar da aterrorizante afirmação:
Não há mais aposta, então.
Perséfone levará o calor para o exterior,
Para as criaturas das trevas continuarem nas cinzas,
E as vivas voltarem a mostrar um pouco de cor.


E sua coleção de pedras?, tentou Muker,
Estão em um lugar melhor agora, além do mais,
Pensei em começar a outras coisas colecionar.
Quis saber: Quais?
Preciso da sua ajuda para começar.
Claro. Quis saber: Quais?

Sor-ri-sos, o que poderia ter de mais?

Algo fácil de obter, mas de dar, ah, era outra história.
Percebendo a derrota, a garota azul abraçou uma única vitória.
Lábios vermelhos se aproximaram dos rachados.
Um momento de fusão que os químicos se sentiriam invejosos, derrotados.
Muralhas derrubadas, defesas desarmadas, prisioneiros libertos.

Libertos. Libertos. Libertos.
“As terceiras chaves”, sussurrou satisfeita uma Sally vendo
O dia do outro lado do continente mostrar o rosto,
“Abrem tanto corações duros como preenche os ocos.”

Nunca soube ao certo se Perséfone ainda vive, 
Ou se foi ilusão de quem das Esperanças persiste.
Se ela voltou aos braços dos pais, ou aos braços do rapaz
Isso quem sabe são eles e ninguém mais.
(O fato é que uma coleção de sorrisos nunca acaba,
E tem que buscar muitos de Muker que nunca se farta)

Órion ainda ilumina as pessoas com seus faróis, tal qual duas estrelas em transe.
Uma constelação de palavras miadas e um pouco de atenção que o amanse.

Sally envelhece, como mulher iludida que sempre foi,
Mas com a nova certeza de que ao menos uma coisa
A absolveu de seus pecados, Dieu, protége moi.

E Muker, por sua vez, tomou o lugar que foi de sua Rainha
Pertencente ao Reino Nenhum e ao Coração. (Tão seu, tão minha.)
Dança com O Piano todos os dias, olhando para a porta,
Por onde passam curiosos com suas tralhas
Mas pela chegada dela a sineta dificilmente toca.

Algo mudara onde todos aqueles fumantes ficavam à tarde:
Um Piano que vivera de tudo, ainda que um tanto mudo,
Cura as dores e vícios d’alma, o Hospital cura as da carne.
(Companheiros que entre si nada arde)
Antes, ali se lucrava com a dor nua,
Agora (e sempre), a música sorri para quem passa na rua. 
Leva à Lua - não tão mais escura.

11 comentários:

  1. Primeiramente irei dar continuação ao seu comentário no meu blog.

    Grilos são assustadores. Na verdade, meu pai costuma brincar que eles dão sorte e são lindos, porém eu não consigo acreditar nisso. Não tenho nada contra, mas parece que eles vão saltar em mim a qualquer momento. Sei lá, um medo bobo, mas o tenho.
    Eu pisei num prego aqui nesse quarto onde fica o computador, quando eu tinha uns nove anos. Eu não soube berrar na hora, porque não senti (o prego era pequeno) mas olhei para o chão e vi uma poça de sangue ao meu redor - e aí eu berrei. Por sorte fui para o hospital e não tinha dado nenhuma outra complicação porque eu tinha tomado a vacina pra isso (que eu esqueci o nome) e o prego não estava enferrujado.
    Quanto à hipoglicemia, eu descobri com treze anos. É algo ao contrário da diabetes. É falta de açúcar no sangue. Mas, nem por isso tenho que me esbaldar de açúcar. Não posso deixar de comer, mas não exagerar. Tenho que fazer refeições leves de três em três horas e exame todo o ano. O exame é assim: eu fico doze horas em jejum um dia antes e quando chego no ambulatório tiro sangue uma vez. Depois disso, tomo um líquido horrível e tiro sangue mais quatro vezes durante quatro horas. Não tenho medo de agulhas, mas ficar em total de dezesseis horas em jejum só com aquele líquido horrível é difícil aguentar.

    Agora, vamos ao seu post.
    Você poetiza tão bem, Mar. Nunca tinha visto esse lado dos teus textos - assim como tu nunca deve ter visto meu lado de fazer poemas -, mas mesmo assim, é lindo. As rimas, as palavras se encaixando... E essa história, em todas as suas partes, cativou-me. Sabe o que eu imaginei? Imaginei e li recitando o seu poema! Isso me fez lembrar dos seis recitais que eu já participei. Mas em especial do primeiro, com sete anos de idade, recitando um poema próprio para um monte de pessoas num dia à noite. Fazem dez anos.
    Seus textos são grandes e demoram a ser postados, mas vale à pena toda a espera. Continue assim, Mar. E afirmo novamente: tens um potencial para escrever um livro. E, caso isso ocorra, tenha certeza que eu o comprarei com o maior prazer e lembrarei-me da minha amiga da internet.
    Um beijo, da @pequenatiss que te adora.
    P.S: Uma das vezes em que li o seu post, li ouvindo Après Moi da Regina Spektor e ficou ainda melhor a leitura.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Vou começar pela imagem. Apaixonei-me. E sobre o texto. Ahhh Mar, que belo! Li pelo menos três vezes, só por causa do gostinho de quero mais que ficou. Quanto maior seu texto, mais cativante ele é. Como a Tiss disse aí em cima, tens potencial para escrever um livro e eu também comprarei.

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  4. Devo confessar também que senti-me totalmente feliz por saber que se inspirou na minha fala que comecei a escrever poemas com sete anos para escrever essa última parte nessa forma de texto. Ah, Mar. Já li mais de três vezes. Ficou tão bom!

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  5. Marcela, eu sei que tenho uma dívida enorme com você.

    Eu... Eu acho que nunca li uma coisa tão bonita, Mar. É como se as palavras acompanhassem o ritmo das teclas do piano, e num delírio fatal, AH!

    Como você conseguiu transformar seu blog numa caixinha mágica?

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  6. Obrigada Tiss, você me faz querer continuar escrevendo, sempre. Uma inspiração, moça. Então não vejo a hora de te ouvir recitar um poema, amiga! <3

    Que bom que você gostou da imagem, Lana! Na hora que eu vi, falei: tem que ser esta para encerrar com chave de ouro. E, awn, que linda, obrigada. Fico feliz de ter te agradado. :}

    Sabe como você paga esta dívida, Lê? Do carrossel "viajante". E, poxa, fiquei com medo de você não gostar, porque era a primeira vez em muito tempo que escrevo um poema. E vendo seu comentário, assim, ão bonito, me dá uma alegria grande. Foi um prazer ter feito esse trato com você. :]

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  7. Ah, que isso, te indiquei o selo foi porque você mereceu mesmo, seu blog é lindo! Ia ler teu texto, mas como não li ainda a parte I nem a II, deixo para depois e leio tudo de uma vez, porque agora estou sem tempo. Beijos.

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  8. Fascinante, Mar. Eu o colocaria em um livro com os melhores contos que já li.

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  9. Fascinante, fascinante, fascinante. *Aplausos*
    O poema honra o seu talento, senhorita! És poetisa nata, não deixou a estória crua, desenvolveu perfeitamente um enredo e rimando deixou um tom animado e inovador. Meus parabéns.

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  10. Poxa Mar, eu nunca sei o que falar, só sei que: eu sou sua fã.
    O seu é o melhor blog que eu leio, é o meu preferido, simplesmente nem sei o que dizer, você é muito talentosa, escreve de um modo que encanta, tomara que você seja uma escritora famosa e que me dê o seu primeiro autógrafo.

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  11. Olá, Mar.
    Seu blog é um encanto.
    Estou seguindo.
    Beijos e au revoir (:

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Sinestésicos.