13 de maio de 2010

Plataforma de embarque.

Seria demais para ela, uma admiradora exemplar de momentos debaixo das cobertas com uma xícara de chocolate quente nas mãos, percorrer horas a fio uma imensa ferroviária procurando por nada. Sim, uma atitude infantil como aquela era surpreendente até mesmo para esta estranha garota, a personagem principal desse espetáculo sem espectador nenhum. Porém, não pensava desta forma antes de desistir deste nada. Talvez nunca tivesse desistido. Anteriormente aquele vácuo que ela tentou cada vez mais esvaziar no seu peito na verdade lutava para preencher qualquer espaço da sua mente. E, de tanto espernear e batalhar, seu pequeno nada se revelava agora um longo filme de época diante dos seus olhos castanhos.
“Um filme em preto e branco”, diria com um sorriso, “inesquecível com suas mulheres sonhadoras, todas suspirando por seus amores impossíveis.” Naquele exato momento nossa garota era uma delas: Uma menina-mulher desesperada pelo seu amor platônico. Negava confessar que amava sem ser recíproca, ou que contava sobre as manias adoráveis dele em seu diário ou sua vergonha em encontrar com o olhar do motivo de suas noites insones. Porém admitia intimamente que sofria horrores por sua partida - talvez eterna, caso ela não fizesse algo a respeito. Iria lutar pelo seu... tudo, portanto era sim uma típica garota clichê.
E se isso era uma coisa boa ou péssima ela iria descobrir apenas depois.
E a tal humilde admiradora de cobertores e chocolate quente estava naquele dia munida do vestido mais bonito que pôde encontrar às sete horas da manhã, sapatos da época da sua querida avó, óculos escuros vintage demais para a pouca idade, lenço de seda caído sobre os ombros finos. Para ela aqueles artifícios era a sua única forma de se sentir bem na “própria pele”, afinal, se o seu físico, glamour e beleza não fossem um primor, tinha direito de, ao menos, se sentir confortável.

Dez minutos.

Era detestável pensar que jamais poderia vê-lo outra vez. Que jamais poderia estudá-lo como se o mesmo fosse uma obra de arte sendo exposta através da vidraça onde ela costumava tomar café. Ou sentir um inconfundível arrepio percorrer sua pele quando acidentalmente encontrava seu olhar confuso, pois o rapaz sempre demorava a perceber que estava sendo observado por uma garota raquítica e freqüentadora de livrarias. Era torturante a menção de nunca mais inalar o seu cheiro de canela quando o mesmo passasse com o caderno de notas musicais debaixo do braço ou jamais ver novamente como os cabelos loiros se desembaraçavam por dentre os seus dedos quando ele se preparava para mais uma apresentação no Holly's Coffee.
Mas de que adiantaria ela tentar uma última chance se ele nunca a notou?
Talvez porque era feita de vírgulas e não de pontos, de parágrafos e não de capítulos. Esta garota gostava mesmo era de abusar das continuações, e não dos fins; odiava o “começar outra vez” e o “esquecer o que passou”, lhe agradava simplesmente continuar a gravar e escrever o roteiro do filme da sua vida.
E era exatamente isso que decidiu: não arquivar uma história que sequer começou.
Com esse pensamento fixo na sua mente disparou pelos últimos degraus da escada rolante, ignorando os olhares reprovadores dos transeuntes ao seu redor. Seu coração se apertou quando cruzara o Holly’s, onde tomava seus melhores cafés da manhã aos sábados e criava poemas imaginários aos domingos. Ouvira Margaret, a garçonete, chamar o seu nome, porém não podia parar naquele momento: faltavam poucos minutos para o embarque dos passageiros das nove horas.


Seis minutos.

Agachou-se sobre os saltos enquanto passava clandestinamente por baixo da catraca, torcendo fervorosamente para que nenhum segurança a tivesse visto. Sem dúvidas ele se sentiria ultrajado porque uma garota vestida a láanos 40 não pagou devidamente o seu passaporte. Mas incrivelmente a sorte estava conspirando a seu favor, então sem mais problemas chegara à plataforma de embarque após alguns minutos. E, quando seus pulmões já não agüentavam mais aspirar oxigênio e seu cérebro já não processava informações novas devido à fadiga, finalmente seu campo de visão o abordara:
Entre vários rostos deformados pelas emoções, entre várias malas escuras, entre todas as nuances de cores, distinguia-se um rapaz olhando incomodado para os lados, como se buscasse algo nos extremos terrenos da ferroviária lotada. Ela não evitou sorrir quando viu uma das mãos pálidas subir à nuca e se enveredar por entre os cachos loiros.

Três minutos.

E então, como se o tempo começasse a correr lentamente, os olhos verdes do músico se viraram em sua direção e captaram sua imagem. Um choque entre duas realidades ocorreu, uma ligação magnética se formou entre os dois amantes até aquele instante desconhecidos. Os pés da garota involuntariamente voltaram a se mover e seu cansaço e sua falta de ar sumiram repentinamente. Tudo desapareceu. Era como se flutuasse. Surpreso, ele mal podia sustentar um sorriso no rosto.

Às vezes coisas difíceis de acontecer se realizam.

Paralisado, seguiu atentamente os movimentos da jovem dos olhos castanhos. Não queria perder nada, desaprovava ter evitado notá-la todo aquele tempo: os cabelos despenteados, o vestido todo abarrotado, o sapato mal equilibrando o corpo, as bochechas (mais que) anormalmente rosadas. Simplesmente bela.
Desviando-se de todas aquelas pessoas mau-humoradas, finalmente ela chegara. Sua timidez era visível, porém, como era inevitável e o momento exigia uma aproximação, a garota o encarou séria.

Ambos tinham pressa. Não em partir.

Dois minutos.

Então, antes que ela pudesse raciocinar uma frase, o rapaz fechou os olhos, inclinou levemente a nuca e pressionou seus lábios contra os dela. Aprofundou o beijo subindo as mãos até o rosto delicado, percorrendo um caminho sem volta, enquanto sentia momentos depois ser estreitado entre os braços finos. Uma carga elétrica e intensa cruzou o corpo dos dois, nada parecia se movimentar em torno a não ser suas respirações. A explosão de sentimentos ocorreu e os corações aceleraram descompassados, ele descobrindo o nome daquilo que sentia, ela tentando absorver na memória o cheiro inconfundível de canela.

Não tinham nada a dizer que pudesse ser expresso em palavras. Mas tudo o que deixaram de viver durante todos aqueles anos precisava ser sentido com toda a intensidade. Agora.

Perderam-se na incomum companhia um do outro, não notando os passos dos transeuntes se acelerarem. A mulher de voz monótona que anunciava a saída dos trens avisou aos passageiros da plataforma seis que se apressassem. O relógio badalava nove batidas compassadas e audíveis.Os minutos voltaram a correr normalmente, quebrando hesitantemente o contato do casal parado no meio do tumulto de sons e cores. Mas não despedaçou o novo laço criado entre eles, fortalecido por sorrisos recíprocos e sinceros, por corações batendo juntos. Separaram-se com custo, nos olhares impresso um "até logo". Sem saber o nome um do outro, cada qual seguiu o seu devido caminho. Mas bem lá no fundo sabiam onde se reencontrar futuramente, afinal, ambos eram exímios admiradores de chocolate quente e notas musicais.
O rapaz dos olhos verdes se foi já sabendo para quem voltar quando terminar os estudos.
E a menina dos olhos castanhos voltou para casa pensando que, de ser tanto clichê, acabou transformando seu filme da vida único.


Não quero que este conto - dedicado às garotas românticas e clichês que têm por aí - tenha se tornado enfadonho, mas não consegui deixá-lo mais curto. Quero saber: compensei a demora? Seu comentário me deixaria muito feliz.

:)

6 comentários:

  1. Compensou e muito a demora, querida. Li atentamente cada frase desse maravilhoso texto e fiquei extramamente encantada com o modo de escrita que tu tens. Os detalhes e precisão do conto dão um ''ar'' especial para o mesmo, fizeram-me imaginar ao pé da letra a situação em que tu descreveu.
    Mas agora, comentando sobre o texto, mesmo sem querer admitir - muitas vezes- para mim mesma, sou romântica e outras tantas vezes, clichê. E nunca realmente levei a sério seguir os meus mais secretos sonhos em realidade e únicos. Talvez, algum dia eu tenha a mesma coragem que a garota do teu texto teve. Beijos, querida e muito obrigada pelos elogios em meu blog.

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  2. Como você escreve impressionantemente bem.

    Não sei o motivo, mas a menina da história me lembrou a Liesel de A Menina Que Roubava Livros :) Se você continuar escrevendo contos fabulosos como este, meu tédio vai simplesmente morrer.

    Um beijo, mon amie chérie <3

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  3. Olá,

    O conto não foi de forma alguma enfadonho.
    Fiquei encantada com a personagem, essa sua força de viver "lhe agradava simplesmente continuar a gravar e escrever o roteiro do filme da sua vida".
    Estou com um sorriso bobo na frente do monitor pelo amor dela ter deixado de ser platônico.

    Beijos

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  4. Ah, eu adorei. Você deve achar estranho, mas meu desejo, enquanto lia seu texto, era de entrar na tela. Quero dizer, meu desejo era de ver realmente tudo isso. À medida que o tempo se esgotava, comecei a ler mais rápido. Como eu queria conseguir ler mais rápido ainda... Meus olhos percorriam cada frase enquanto eu me deleitava com o que lia.
    Admito que estava cansada de histórias de amor, ou qualquer assunto em relação. Mas, acho que, pelo fato do texto ter começado incrivelmente bem, e ter continuado assim, eu fui me interessando. Adorei, mais uma vez.

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  5. Thaís

    Oh, mon chér. Que linda, obrigada. Me sinto igualmente assim de vez em quando.

    Letícia

    AWN, adoro este livro. É meu favorito! E eu escrevi esta história pensando na música You'r beautiful do James Blunt. Magnífica. Obrigada, mon chér, espero ter acabado mesmo com o seu tédio - e que você viva a acabar com os meus! ♥

    Rayane

    Own, que bom. Que você seja igual a ela e siga seus sonhos. Fico felicíssima em sabe que gostastes do texto.

    Marina

    Não acho estranho, nunca! Adoro saber que você se sente assim, quer dizer que o texto ficou bom (e fico alegríssima com isso). AWN ♥ Seu comentário em deixou tão feliz! Meu sorriso é gigantesco! :)

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  6. Adorável. Às vezes tenho devaneios assim, fico me imaginando como essa garota, em todos os detalhes.

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Sinestésicos.