18 de junho de 2010

Voltando à página anterior.




- Olá, querida Janet. Como foi em Barcelona? Aposto que fora tão bom quanto em Paris. O primeiro lugar que você vira assim que desembarcou – ou pousou, não sei – foi aquela cafeteria daquela fotografia que tanto você guardava com precaução na sua carteira, para que ela não se perdesse no meio da minha desorganização, certo? Ah, eu sabia que você não deixaria de visitá-la.

“Lembro-me de quando eu a encontrava acordada, entre as duas e cinco da madrugada, seus olhos verdes como as folhas do carvalho do nosso quintal fixados no teto. Então, você se virava para o outro lado e murmurava que, se tivesse dinheiro, a única extravagância que iria conceder a si mesma era a de ir à Barcelona para tirar fotos das lojas antigas e tingidas de bronze claro pela cortina luminosa do sol.

"Eu queria ter podido levá-la até Barcelona.

“De qualquer forma, espero que não tenha esquecido a minha Polaroid em cima de alguma mesa, no meio de todos aqueles turistas. Ela vale para mim tanto quanto a fotografia de uma cafeteria caindo aos pedaços vale para você. Oh, aqui está minha querida máquina. Obrigado pelo cuidado. Sem mesmo revelar as fotos eu já imagino imagens de você se misturando com os artistas de rua e contando, resignada, todas as janelas floridas sobre as calçadas apinhadas de gente. Afinal, desde o dia em que nos conhecemos você não mudou nada, continua com suas compulsões infantis.

"E adoráveis.

“Por que não fala nada? Geralmente é tão comunicativa, Janet, não suporto este silêncio. De uns tempos para cá nenhum som me agrada mais. Criei predileção apenas por um, mas este agora não escapa de seus lábios. Tudo bem, confidenciarei mais sobre os meus fantasmas, se pretende apenas me dar esse sorriso encantador e voltar a observar a sua fita de cetim.

“Oh, por falar nisso, quase me esqueço de mostrar uma coisa. Olhe o que encontrei! Seu porta-jóias. Estava sumido muito antes da sua primeira viagem de verdade, não é? Essas cores azuis sobre a tampa, essas flores delicadas em relevo, tudo me lembra o nosso modesto jardim no verão. Está surpresa, não é? Eu também fiquei surpreso, até eufórico, quando vi a ponta dessa caixa saltando da terra. Enquanto eu caminhava sobre a grama impregnada do orvalho matinal, encontrei este porta-jóias um pouco desenterrado atrás do banco em que antigamente tomávamos café da manhã. Deve ter sido o cachorro do vizinho que pulou a cerca novamente e abrira buracos no quintal. Não sei por que você o escondera de mim, mas também não quero explicações.

Cartas e diários.

"Cartas e diários era o recheio da caixa. Confissões infantis e outras sérias que eu lhe enviei há muito tempo, além de cartas que você jamais tivera coragem de mandar; outras poucas de sua mãe, umas aborrecidas de seu tio, várias de espanhóis que enviastes tentando a sorte de encontrar alguém que lhe dissesse como era a fragrância de Port Vell de manhã.

"Senti como se fosse desmoronar a qualquer momento. Não sabia que esse arquivo tão precioso estava bem debaixo do meu nariz.

“Queria agradecer pelos elogios que fizera ao meu caráter e ao meu jeito desengonçado de dançar. Jamais me esqueço que foi assim que nos conhecemos: Você quebrou o salto do seu sapato no meio do salão, enquanto eu dançava – “tentava dançar” é mais cabível aqui – com uma garota que nunca vi na minha vida. Me aproximei aos tropeços enquanto todos apenas se importavam em observar a cena constrangedora. Foi a primeira vez que toquei em suas mãos e senti todos aqueles sentimentos que eu acreditava que existiam apenas nos filmes enjoativos de Hollywood.

"Vejo que você guardou o pedaço do salto quebrado no meio das cartas. Isso foi tão surpreendente pra mim quanto as suas manias.

“Mas eu queria falar sobre algumas coisas que aconteceram entre nós, que não ficaram bem resolvidas. Sim, realmente eu odiava suas amigas, os lugares que você amava, os ídolos que você admirava. É porque você passava mais tempo ao seu lado, mesmo que metaforicamente. Desculpe por nunca ter te ouvido decentemente quando ouvia seu choro por causa das saudades de sua mãe falecida. É que suas lágrimas me atormentavam. Horrivelmente. Não lhe acompanhei na roda-gigante naquela vez porque eu tenho fobia de altura. E, ah, também gostaria de não ter me esquecido tantas vezes do seu aniversário, afinal, conforme o tempo passa a memória começa a perder seu vigor.

“E por fim, arrependo-me profundamente de não ter adotado aquele gato malhado que vimos anos atrás vagando na rua. Talvez ele me fizesse companhia hoje à noite e em várias outras. É que eu estava atrás de novas aventuras que não prometiam gatos nem rodas-gigantes, mas sim você.

"Não sei se compreenderia, já que vivia dizendo que eu só sabia trabalhar e não lhe dava atenção. Parece história de louco? É, concordo. Já não sei se consigo separar a realidade da ilusão como antigamente. Olha, esqueça deste assunto, sim?, porque ele me atormenta. Toma esta xícara de chá que eu acabei de preparar. Está tão quente como sol, Janet, este que também é objeto de seu amor.”

Ele pousou a xícara de porcelana com cuidado ao lado da sua poltrona. Suspirou e levou o cigarro mais uma vez aos lábios. Inspirou a fumaça, seus olhos se perdendo no vazio daquele céu de verão, agora tão igual aos outros que vivenciara desde a primeira viagem de verdade de Janet. Parecia não haver sol quando ela estava ausente. Com ânsia de segurá-la mais alguns minutos ao seu lado, uma pergunta que ele nunca se interessou em fazer à Janet escapou de repente:

- Ei, como vai o seu livro? Finalmente o herói desvendou o mistério da caixa azul?

Silêncio. Ele virou o rosto marcado de rugas para o lado. A cadeira de balançar, com o seu tênue movimento característico - para frente, para trás, para frente, para trás... -, estava vazia. Virou-se novamente e acomodou-se em sua poltrona, absorvendo mais um longo e triste trago. Já anoitecia.

- Como sou distraído. – murmurou. – Esqueci novamente que você está morta.

E suspirou mais uma vez. Talvez não tivessem fotos para serem reveladas.

9 comentários:

  1. Muito bom, hehehe, parabéns, lindo texto, no meio dele eu comecei a pensar nessa hipótese de final, bingo rsrs

    ResponderExcluir
  2. Meu coração tocou o chão quando descobri que Janet morreu. Mas, infelizmente, palavras me sobram mas não sei usá-las para me referir ao quão gostei deste texto.

    É nostálgico. Posso imaginar o rapaz retirando o porta joias do jardim. Posso ver seus sentimentos e sua vida vazia desde que Janet partiu. Posso ver. Não há nenhum véu sobre seu texto e a imagem que vejo.

    Existem lágrimas cortando meu rosto, agora.

    ResponderExcluir
  3. Minhas humildes palavras não chegam aos pés do que eu senti lendo o seu texto.
    É lindo, é encantador.

    ResponderExcluir
  4. Encantador. Tuas palavras e o teu modo de contar essa história tão bela fascinou-me, desde o primeiro paragráfo de minha leitura. Cheio de detalhes, como eu gosto e com uma escrita impecável. Novamente, tenho que cubri-la de elogios sobre textos que tu escreves. E o mais estranho é que eu li seu texto ao som de Dear Bobbie, que conta uma história parecida. Acho que essas coincidências que estão acontecendo hoje com a gente me dão um pouco de medo. Hahahaha. Brincadeira, querida. Confesso que senti uma sensação estranha, de tristeza ao ler que Janet havia morrido.
    Mas é assim, certas coisas deixamos guardadas em nós e nunca revelámos a pessoa que amamos. Até que algum dia, o arrependimento chega junto com todas as lembranças.
    Beijos, querida. ♥

    ResponderExcluir
  5. ah, que lindo!
    desconhecia este teu cantinho e que felicidade o ter encontrado :)
    voltarei mais vezes, mesmo que pra ler quietinha e escondida.

    ResponderExcluir
  6. Nóssa, muito boa a história e a maneira contada.
    amei, e mais uma vez achei fantástico seu texto.

    no final dá aquele aperto no coraçõ, né.
    muito bom mesmo.

    ResponderExcluir
  7. Fico fascinada em descobrir que atingi meu objetivo: encantar meus leitores, atrai-los para Janet. Ela me nasceu de repente, não sei bem como. Agora lendo o texto ela me faz lembrar de minha avó. No mínimo curioso. Obrigada, de verdade, pelos comentários! Vocês não sabem como me fizeram feliz. :)

    ResponderExcluir
  8. Quando comecei a ler, não consegui mais parar. E não me arrependo disso. Eu cogitei deixar para ler o resto depois, já que minha mãe não para de me chamar. Mas, como disse, eu não consegui e nem quis. Meu coração apertou ao ler sobre a morte de Janet. Por outro lado, isso mostrou o amor que esse homem apaixonado sente por Janet. E isso foi realmente lindo.

    ResponderExcluir
  9. Como você conseguiu? Deveria ser proibida de escrever tão lindamente. Adorei. E já me revelo como sua mais nova fã. Admito, em alguma parte perdida pelo texto, pensei que Janet estivesse morta. Oh. Esperava que estivesse errada. Sua descrição me deixou fascinada. E me vi presa pelas suas palavras, muito real. Muito tocante. Parabéns, e parabéns pelos outros textos, que, confesso, fiquei com preguiça de comentar. Este, entretanto, seria impossível não comentar. Seria injusto. Injusto com a perfeição dele. Mais uma vez, parabéns, agora serei seu carrapato, estarei grudada neste blog. Beijos.

    ResponderExcluir

Sinestésicos.