15 de abril de 2011

(pequena) doação emergencial do Universo.



- Essas minhas dúvidas dedico à flor de cerejeira Tiss, que deu o sabor da idéia, do ônibus e da menina. Feliz aniversário adiantado, minha querida. –


Sentido, caros dicionários, que busquei, busco e buscarei até o resto de minha

  (mutação, sentimento, equilíbrio, medo, seleção natural, artificial...) 

                                                                                                 e x i s t ê n c i a



(mas ainda não decidi se depois da "existência" insiro um ponto final ou uma interrogação)


Há sempre uma certa tensão quando você sobe os degraus sujos e íngremes de um ônibus depois de ter deixado suas malas (e agora sua segurança) com um completo desconhecido. “Bem vinda ao coletivo Início da Vida”, atalhou ele, exibindo os caninos amarelados e os olhos fundos. “Ou da Morte, que seja.” Talvez fosse minha constante confusão de realidade depois de um filme, talvez fosse simplesmente o calor, mas o fato era que o sol parecia estar não em cima de minha cabeça, mas abaixo dela, explodindo em magma e hélio.



Não ignore este fato. Eu mesma tento usá-lo a favor da minha lucidez.

Número 42, informara o cobrador. Passei os olhos pelo corredor. Número 42, estava bordado em uma poltrona azul com estampa de andorinhas. Certo. Mas alguém se apossara do Número 42, e este alguém não era eu. Estanquei, as mãos abanando no ar. O que falar dele - ou melhor, dela? A Número 42 tinha uma concha enorme pendurada em um barbante encardido. Se confundia com a cabeleira negra que escorria pelo rosto oriental, roçando de leve na nuca tatuada pela fórmula do Cloreto de Sódio. Uma criaturinha saída de algum desenho de Edward Gorey, ou algo mais moderno: essa era a Número 42, e ela sabe absolutamente tudo sobre você.

- Desculpe, mas este é o meu lugar. - falei finalmente, levantando uma sobrancelha.

Alguns segundos se passaram sem que nossos olhares deixassem de se alfinetar. Prevendo a vitória iminente da minha oponente, levantei um lenço branco em sinal de paz e sentei-me ao seu lado. Parecia ansiosa. Puxava o chiclete sem cor e colocava-o mais uma vez dentro dos lábios. E de novo. Masca. Puxa. Clac, catraca. E de novo. Masca. Puxa. Atchim, assoa. E de novo. Ping, suor. Masca e...

- Qual motivo da viagem? - perguntei, tentando quebrar aquela atmosfera antipática.

- Estou aqui para encontrar o sentido da vida.

- Mas a vida é uma piada! - exclamou um senhor por cima do jornal cuja data fora corroída pelas traças.

- Uma piada do amor, então. Porque a vida só tem sentido graças ao amor. - suspirou a mulher de bobes logo atrás, a aparência transpirando solteirice.

"O sentido é o mar", revirou a voz obsessiva da Número 42 antes que o ônibus se movimentasse, jogando seus passageiros contra os bancos. Ela simplesmente pegou uma garrafa de Coca-Cola, bebeu metade do conteúdo e então começou a descolar o adesivo da embalagem com a unha.

- E você, aonde vai?

- Para a casa da minha tia.

- Ela mora no Inicio do Universo?

- Em cima de uma loja de gibis usados, ao leste da minha cidade.

- Não deve lucrar muito. Vai passar alguns dias lá? 

- Não sei mais. – meus olhos deitaram para fora da janela, estranhando a densa neblina que não fazia parte das construções baixas da minha cidade. – Acho que peguei o ônibus errado.

- Talvez eu possa lhe dizer se enganou ou não. Já achou o sentido da sua vida?

- Se nem os filósofos se resolveram... – respondi, desconfortável com a sua insistência.

- Você deve ser daqueles que acham que a vida não tem um sentido. Mas se você diz que a vida não tem sentido, você já está aplicando um sentido a ela. - replicou, apoiando-se na garrafa grudenta e em frangalhos. –  Esse pensamento errado é dos tempos modernos e dos céticos. Mas, na minha opinião, são eles que sempre quebram a cara. Esqueça-os. Você acabou de deixá-los para trás já que pegou o ônibus errado. Esse aqui é para quem já sabe o sentido da vida.

- É uma pena, pois junto com os tempos modernos ficou o meu melhor par de casacos. 

Respirei fundo e tentei pensar que, ao menos, iria para um lugar diferente e talvez teria novidades para contar. (No fim, nada poderia piorar, poderia? Por favor, Leis de Murphy, Coyote e filmes de terror, não me façam pensar o contrário) Os passageiros sonolentos pareciam ter acabado de sair do purgatório. Era um dia nauseante (ou seria noite? a opacidade dessas janelas me confunde), os espaços entre os bancos exigiam certa flexibilidade. Suspirei, sabendo que aquele era o preço real por uma passagem mais econômica e pela minha estúpida confusão. 


Mas ignorava que estava pagando também o preço de uma epifania.

(Meus pensamentos passaram a navegar sobre todos os sentidos da vida que já esbarrei pelo caminho, sem realmente analisá-los.) Acompanhei, paciente, a curvatura do meu lar se alongar enquanto o ônibus abandonava a atmosfera (O propósito da vida não é encontrar a si mesmo, mas criar a si mesmo) o espaço sideral evocava um som agudo e baixo que, até onde eu sabia, os seres vivos não poderiam detectar (a música) ecos do Big Bang (o nascer, desenvolver, reproduzir, morrer) meu coração pulou quando desviamos do Hubble no último segundo (é uma energia) a lua esburacada de Quixote (peça de teatro) virando à esquerda do terceiro anel de Saturno, ah, como eu queria que coubesse em meu dedo (um sopro) os braços luminosos tentando abraçar o Universo. pobre Via Láctea. ele é mais rápido e maior que você (coisa mais rara do mundo, a maioria apenas existe) quem aí tem uma câmera? preciso fotografar a maternidade da nebulosa de Águia (questionar) ainda me lembro de Cassiopeia, com sua vaidade ferida, me observando de cabeça para baixo (poesia) rápido, esses pulsares me dão medo! (aproveitar o quanto puder) "é só um cometa", informou 42 jogando o chiclete pela janela sob meu olhar reprovador... (portas fechadas e janelas abertas...)

E assim o tempo se deformou sob os batizados que eu e Número 42 fazíamos, a todo instante, para tudo o que não era (ainda) nomeado pela ciência. E, se vi vida, foi em cada rastro de mistério que o ônibus não podia se dar ao deleite de captar. A vida de um modo geral ainda é um mistério, cuja solução Número 42 me informou enquanto a velocidade diminuía e não víamos nada mais além de nada, sobrando apenas o nada mesmo, nadinha de tudo.

"Fim do Universo", anunciou o cobrador. Por onde ele passava gotículas flutuavam e tocavam a face de quem o seguia. Sempre chorava. As almas que tremeluziam sob minha visão começaram a se levantar, carregando consigo apenas suas histórias e se jogando ao infinito além da porta. Número 42 era a última. Parou na soleira enferrujada do ônibus, encarando-me com uma expressão indecifrável. Os seus cabelos se confundiam com a escuridão como se dançassem embaixo da água.
 Eu não poderia acompanhá-la para onde o destino era uma incógnita, assim como fez os navegadores de antigamente. Ao menos não agora. Talvez a minha tia ainda me esperasse com aquele sorriso de converter até mesmo o mais resistente dos corações. E eu precisava me agarrar a isso.

Você sabia, Número 42, que seus olhos são da cor de uma galáxia solitária e revoltos como o mar ao anoitecer? Faz todo sentido sua obsessão. Você é um oceano de Via Láctea encarnado em uma pessoa. E o oceano preenche você, como a vida.

As portas foram se fechando, minha mão escorregando pelo corrimão. Entre meus dedos, a concha - o mar. No meu coração, tudo - o céu. Então ela me disse, antes do último fio de luz se esvair por completo no silêncio: 

"Se você não tivesse errado, não estaria aqui. 
a evolução, os versos ao acaso, o amadurecer... 
Nós somos frutos do erro
e é do erro que a vida veio e prosseguirá."

E se foi, deixando o sabor salgado como NaCl.

13 comentários:

  1. Que texto mais cativante, Mar.
    Parabéns, e que todos possamos pegar o ônibus errado de vez em quando.

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  2. Soa como música para os meus ouvidos.



    Valeu a pena esperar.

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  3. Talvez eu seja mesmo mais rigorosa do que deveria. Mas simplesmente não consigo admirar quem trata as palavras de forma brusca, sem compaixão. Não consigo admirar quem as solta num emaranhado de linhas desconexas, sem sentido, nem para o próprio escritor. Prefiro o carinho, a atenção, a inquietação. E há uma semana, todos os dias, leio este texto. E não consegui encontrar uma só linha pela qual não tivesse me apaixonado. Parabéns pelo post [e pelo blog!]. Já te sigo.

    Abraços!

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  4. Ah Mar, eu não sei descrever seus textos. Eles me passam a sensação de psicodelia, e eu adoro. Espero que um dia você escreva um livro, fará não só eu, como muitas pessoas felizes... Parabéns, de verdade.

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  5. Esse texto intrigou minha noite. Talvez o fato de eu tê-lo lido ao som de Lucy in the sky with diamonds tenha ajudado bastante. Mas não deixa de ser um texto brilhante. Brilhante como todas as estrelas, do começo ao fim do universo.

    beijos, coração.

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  6. Que coisa mais linda. Você escreve muito bem, Mar. Cada linha tem o seu valor e você coloca tudo no lugar certo para criar uma harmonia. Seus textos são uma dose de alucinógenos que me fazem viajar por um tempo. Parabéns.

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  7. Primeiro eu sinto que preciso desculpar-me. Sim, desculpar-me por aparecer somente agora, após dois meses em que escreveu esse maravilhoso texto.
    Sentia-me conturbada, cheia de preocupações e ilusões em minha cabeça que a inspiração não queria mais se aproximar de mim. Vivi um tempestade forte. Mas passou, passou e agora tenho o meu céu azul. Tenho tanta coisa para lhe contar, tanta. E deixo-te uma recomendação de música: Rosie and Me. Procure no youtube as músicas. Tu irás se encantar.
    Quanto ao texto, uma palavra o define: MARAVILHOSO. Levei-o como um presente de aniversário. Um dos mais belos. Adorei a forma como você desenvolveu a minha ideia. Temos que fazer mais vezes isso. E você tem que aparecer por aqui.
    Agora, depois de um mês, queria desejar-te feliz aniversário atrasado. Espero que o seu dia tenha sido maravilhoso. E também quero que apesar dos seus dias estarem sendo corridos, quero que eles estejam sendo divertidos e com um ensinamento a cada final do dia.
    Escrevi um texto hoje e adoraria que você lesse quando pudesse. Então, vou ficando por aqui. Um beijo, minha Mar. Da sua amiga, @pequenatiss.

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  8. Lindo, menina! Encantada.
    Volto sempre ;)

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  9. Eu tenho uma reclamação... aí você pensa, depois de meses sumido, veio esse carinha que apareceu do nada e tem uma reclamação, o que será que esse patife tem a dizer? A-ha, é aí que você se surpreende minha cara husiadhsaiudsa, brincadeiras à parte, a reclamção é que não tem excelente lá pra votar, só ótimo, fiquei insatisfeito com o ótimo, mas votei ótimo dhuisahduisahdsuiahdisa, porque você escreve tão bem, mil parabéns, é magnífico ler um texto seu, você tem um dom de poucos.

    Ah, voltei a escrever, e irei voltar a ler diariamente todos os blogs em que eu me deliciava antigamente, muito obrigado por deixar minha noite mais feliz, beijos!

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  10. Eu gostei muito dos seus textos, sinceramente apaixonei. Você escreve muito bem, e agora seu blog teve mais um fã. Parabéns, você merece.
    E este seu texto é ótimo, é muito você perceber quando estiver a mudança dos sentidos dos personagens, isso me cativou.
    Abraços...

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  11. Todo dia passo aqui, e leio esse texto na espera de outros.
    Em 6 dias fará 1 ano que não posta mais, sinto-me órfã de Mar.
    A sua espera.

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Sinestésicos.